Além do sexo

"Calcinha no varal", de Sabina Anzuategui, utiliza as relações sexuais como matéria principal
Sabina Anzuategui, autora de “Calcinha no varal”
01/04/2005

Viver para contar. Uma das muitas missões da literatura, talvez a principal, é a de contar histórias. Ainda que existam aqueles que busquem uma “missão” política, o sentido primeiro de um romance, por exemplo, é o registro de uma narrativa ficcional, que pode ter uma relação com a realidade, tornando-se verossímil. Nesse caso, no entanto, é fundamental que a história possua alguns pontos cardeais do cotidiano. É daí que se chega ao início desse texto, uma vez que é preciso viver para contar, como escreveu recentemente Gabriel García Márquez. Mas não é necessário ir longe para buscar exemplos. No começo de março, a roteirista de cinema Sabina Anzuategui publicou a novela Calcinha no varal, cuja história nos leva ao conhecimento de Juliana e suas aventuras como estudante, pretensa escritora, amante e, sobretudo, jovem com o mundo inteiro à sua frente. Na apresentação da obra, houve quem dissesse que se tratava de uma espécie de novela de formação, “porque carrega esse caráter de rito de passagem, formativo, do relato das experiências que se acumulam para acionar o salto, aquele exato momento em que se passa de uma coisa a outra”. Esse trecho, que pode assustar o leitor mais impressionável, não deve ser tomado como verdade absoluta, pois apresenta o livro apenas na superfície.

Em profundidade, o que se vê é uma novela que tem as relações sexuais como matéria principal. O leitor, num primeiro momento, chega a ter a impressão de que se trata de mais uma daquelas obras em que o relato sexual é explorado in extremis, servido como corolário da curiosidade e do voyeurismo dos dias marcados pela exibição e pelo fetichismo. De fato, as razões para tanto não são poucas. A autora não poupa tinta nas suas descrições, que, certamente, vão chocar aqueles que imaginam que as mulheres não sabem falar de sexo, mas, sim de amor. Em alguns momentos, Henry Miller, autor da trilogia Sexus, Nexus, Plexus, ficaria ruborizado com o realismo despretensioso da autora, como no trecho a seguir: “Fiz sexo anal poucas vezes. Na primeira tinha dezessete anos e conheci um cara lindo, com um carro lindo, terno lindo. Ele quis e eu deixei (…) e algumas horas depois meu intestino soltou”. E, na verdade, se o livro fosse inteiramente nesse ritmo, seria correto afirmar que a obra é mais uma que fala de sexo, assunto já tão bem tratado por autores diversos e de maior e menor quilate, como Philip Roth, em O Teatro de Sabbath, e João Ubaldo Ribeiro, no celebrado A casa dos budas ditosos.

A boa notícia é que a novela de Sabina Anzuategui não se resume ao sexo. Há mais. A verdade pode até estar no sexo, mas a tensão e a febre dos acontecimentos estão nos diálogos, nas reflexões e, principalmente, no olhar acurado da narradora. Desse modo, as descrições sexuais são todas elas permeadas por derivações analíticas da protagonista, que ora se assemelha a uma cronista, ora se aproxima de uma mulher experimentada pela vida, como se quisesse transmitir suas experiências aos demais. Entretanto, esse não é o objetivo. Com efeito, a principal característica do livro é o relato isento da protagonista acerca de uma série de acontecimentos em que ela teve um papel central. Nesses eventos, Juliana chega a sofrer por ser uma garota tímida e que se apaixona por um colega de sala, mas, ao contrário de se lamentar e ridicularizar o macho, como muitas de suas contemporâneas fazem, ela se debruça sobre a previsibilidade e a banalidade dos relacionamentos: “Algumas coisas acontecem quando você está com raiva de um homem. Quando ele te trai e você está com muita raiva, e poderia até parar pra pensar que não gosta dele tanto assim, mas nem isso consegue fazer”.

Uma outra curiosidade do livro refere-se ao seu formato, o estilo. A autora mantém na obra uma coerência bem-feita no tocante à estrutura da narrativa e na formação do conjunto. No primeiro caso, nota-se um exercício de concisão. Sabina opta pelos períodos curtos, que, por sua vez, são bem claros e incisivos. Não há como manter um discurso conciliador. E é por isso que a obra, às vezes, parece ser forte demais. Percebe-se, por outro lado, que os capítulos são independentes, muitas vezes se assemelhando a contos, cujos personagens em geral reaparecem. Ainda em relação à narrativa, cabe mencionar o fato de sua estrutura ser parecida com a de um roteiro, muito porque as idas e vindas da história conduzem o leitor com fluência, de maneira que o leitor nem percebe que ultrapassa as páginas com tamanha fluência. Decerto que alguns trechos também chamam a atenção, mas em inúmeras passagens é como se a imagem estivesse edificada em palavras.

Em meio a todas essas características, Juliana desenvolve-se como personagem. Pois, se no início, ela parece tão ou mais imatura quanto a história parece ser, ao longo da narrativa, ela adquire uma sensibilidade que a transforma em mulher, fato que fica evidente se se comparar suas impressões iniciais com suas constatações finais; suas dúvidas com suas certezas; suas brincadeiras de casinha com a gravidez indesejada. Afora isso, a história do relacionamento marcado por cenas de sexo picantes, mas com alto teor melancólico mostra como as expectativas de quem ama são, em geral, suplantadas por paixões não-correspondidas. Triste, mas verdade.

Em pouco mais de cem páginas, Juliana conta, de maneira sóbria, como sua vida foi virada do avesso e, mais importante que isso, como atingiu a razão necessária para não transformar sua vida em conto de fadas fracassado. Talvez o fato de a personagem também ser escritora torne suas histórias tão mais verossímeis do que a média dos romances que ora são publicados. E, apesar de Calcinha no varal ser uma novela com tudo para ter final feliz, o que se atesta é que a felicidade é algo que não se pode premeditar. E só pode ser feliz, ou menos insatisfeito com a vida, quem se sujeita a encarar suas condições, eis uma das mensagens do livro. Nesse sentido, não há como dissociar a experiência da narradora como peça fundamental para a existência do livro, pois foi a partir dos conflitos (internos e externos) que a narradora surgiu, e a obra nasceu.

Calcinha no varal
Sabina Anzuategui
Companhia das Letras
110 págs.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho