A vida como ela parece ser

Acontecimentos da existência de Nelson Rodrigues ajudaram na construção de seu universo ficcional, que pôs em xeque os valores tradicionais burgueses
Ilustração: Nelson Rodrigues por Fabio Miraglia
01/07/2022

Autor de importantes peças teatrais, romances folhetinescos, crônicas diversas, memórias, apaixonado por futebol, homem de TV e criador de frases lapidares nem sempre politicamente corretas, Nelson Rodrigues escreve como quem “escuta, espreita, esquadrinha” a sociedade brasileira machista, racista e preconceituosa de seu tempo. O escritor comentou, certa vez, que suas obras dramatúrgicas são “pestilentas, fétidas”, com a intenção de pôr em xeque os valores tradicionais das camadas burguesas. Os dois adjetivos podem também ser estendidos a seus folhetins e algumas de suas crônicas.

Em Memórias: a menina sem estrela, volume que condensa 81 textos originalmente publicados no segundo caderno do jornal Correio da Manhã entre fevereiro e maio de 1967, Nelson faz uma espécie de “autobiografia entrecortada”, sem ordenamento cronológico, narrando acontecimentos pessoais, familiares e profissionais que abarcam cerca de cinquenta anos de sua vida. Certamente algumas chaves de compreensão do universo ficcional do escritor se encontram nestas reminiscências. Em Panorama do teatro brasileiro, Sábato Magaldi comenta que “o mundo se coloca para ele como o lugar do pecado, e as suas criaturas pendem entre as mais severas proibições e o prazer de infringi-las”. Essa síntese que o crítico fez da dramaturgia rodrigueana resume não só a vida de Nelson, mas também algumas de suas fixações no próprio texto romanesco.

Quando começou a escrever sobre sua própria história a convite de José Lino Grünewald, Nelson já era um escritor consagrado e tinha publicado O casamento, em setembro de 1966, obra que a crítica considera efetivamente um romance, uma vez que as narrativas anteriores são geralmente vistas como resultado de “adaptações de peças teatrais ou de histórias escritas para os folhetins da imprensa”. O livro, porém, acabou sendo retirado das livrarias em outubro do mesmo ano porque a censura da ditadura civil-militar, instaurada em 1964, considerou que o volume atentava contra os tradicionais valores da família. Cumpre ressaltar que não se trata da primeira publicação dessas crônicas de feitio memorialístico de Nelson. Na realidade, a editora do Correio da Manhã foi responsável pela primeira edição de Memórias. Lançada em 1967, a obra contava com 39 textos — à época, os demais não foram incluídos pelo escritor.

No prefácio ao volume de Memórias lançado pela Nova Fronteira, Bárbara Heliodora destaca as “experiências trágicas que ele viveu em sua família”, tais como mortes, acidentes trágicos, doenças, etc., que foram incorporadas à sua dramaturgia. Estendendo a observação da crítica teatral para o universo da narrativa, esta tragicidade que marca a existência de Nelson e impacta no seu teatro causou também efeito no Nelson romancista, cujas obras tendem ao folhetinesco. Não só isso. O escritor vai focar outras temáticas que desagradam o público: adultério, incesto, estupro, relações homoafetivas, prostituição. Numa sociedade hipócrita como a nossa, que fingia (e ainda finge) viver numa atmosfera idílica e falseadora de seu comportamento sexual, foi como se o escritor metesse a mão num vespeiro. Chamaram-no de tarado, pervertido, obsceno, anormal, pornográfico.

Em várias passagens dessas memórias de Nelson, há um quê de melodramático. Num e noutro texto, confessa o autor que muitos acontecimentos vistos e vividos por ele tiveram aproveitamento literário. Na publicação de 26 de março de 1967, por exemplo, Nelson relembra um fato de sua adolescência: uma menina que morrera de febre amarela, que “estava no caixão pequenino, de arminho e vestida de anjo”. Deste acontecimento que o impressionara, o dramaturgo destaca que “remontei, em Vestido de noiva, o velório de minha infância”. Não só isso: uma das irmãs da garotinha morta chamava-se Alaíde, e o nome serviu para Nelson batizar a personagem central da famosa peça.

Em outras crônicas, Nelson conta sobre o assassinato do irmão Roberto na redação do jornal da família. Uma mulher fora ao local para matar Mário Rodrigues (o pai) ou um dos filhos. Quando ela entrou, perguntou a um dos funcionários se algum dos Rodrigues estava no jornal. Calhou que Roberto estivesse, atendesse-a e recebesse um disparo no abdômen. O projétil foi parar na espinha. Segundo Nelson, “foi uma tragédia que quase destruiu a família”, visto que o pai viria a falecer alguns meses depois — decerto impactado pela morte do filho.

Noutro texto, o cronista menciona que o escritor Lúcio Cardoso tinha identificado numa das cenas de Vestido de noiva a morte de Roberto. O próprio Nelson não só confirma isso, mas vai além e observa que “o meu teatro não seria como é, nem eu seria como sou, se eu não tivesse sofrido na carne e na alma, se não tivesse chorado até a última gota de paixão o assassinato de Roberto” — comentário revelador de que soube criar literariamente até mesmo tomando por base as desgraças vividas pela própria família.

Em vários textos, Nelson mostra este fascínio pela morte alheia ou imaginariamente até pela sua. Intitula-se “pequenino suicida” numa crônica que rememora seus sete, oito anos de idade, comenta que mergulharia “no caldeirão das delícias ferventes” de seu próprio velório. Chega a dizer, numa outra, que gostaria de “morrer antes dos outros. Se um de nós tivesse de ficar cego, eu queria ser o cego, ou leproso”. Mas a morte de outros não deixa de comovê-lo. Na coluna de 5 de março de 1967, desenterra outra lembrança funesta da infância: uma vizinha adúltera tomou veneno e morreu. De um lado, a atração irresistível da morte que se soma à infidelidade; de outro, o fato lhe serviu, mais tarde, para escrever o drama Perdoa-me por me traíres.

Fica evidente o quanto há de trágico e, às vezes, escabroso nos acontecimentos que envolveram a existência de Nelson e como tais fatos impactantes ultrapassaram o terreno da realidade e acabaram contribuindo para seu universo ficcional. Alguns exemplos acima e outros que vão apresentados nos parágrafos seguintes demonstram que a vida e a ficção do escritor se entrelaçam, misturam-se, tornando-se difícil saber onde começa uma e termina a outra.

Indícios naturalistas
Magaldi sintetiza o teatro de Nelson como uma “relação hedionda ou uma monstruosidade”. Tal compreensão do crítico teatral não só se vincula à arte, mas também à própria existência do dramaturgo, cronista esportivo e homem de TV, entre outras ocupações, como pôde ser percebido nalguns comentários anteriores. Habitam o escritor a capacidade de apreender certas nuances psicológicas do ser humano, certa atração pelo mórbido e pela sexualidade exacerbada. Tudo isso serve a ele para extrair elementos para moldar seu artefato literário, e esta moldagem artística passa pela dissecação dos infortúnios alheios, como se fosse um escritor de romances naturalistas.

É justamente do Nelson que elege o “desvario sexual” como um de seus temas prediletos na dramaturgia (e nos romances-folhetim também) que se procura identificar o romancista cujos enredos folhetinescos se voltam para temas nos quais há a transposição cruel da realidade — destaque para uma espécie de pathos sexual que está frequentemente presente —, sendo esta crueza muitas vezes expressa pelo escritor sob a perspectiva de seus aspectos mais repulsivos.

Como entender afinal o Nelson romancista? Estaria ele simplesmente reeditando alguns vezos naturalistas? Estaria ele visando atender às expectativas de um público leitor ávido por narrativas de entretenimento que soubessem dosar peripécias, erotismo e uma visão conservadora e moralista, típica de meados do século 20, que “favorecia as experiências sexuais masculinas enquanto procurava restringir a sexualidade feminina aos parâmetros do casamento convencional”, como argutamente observa Mary Del Priore em Histórias íntimas? Trata-se de questões que não vão ter respostas absolutas nem satisfatórias, mas que decerto estão em suas peças, romances, crônicas e memórias.

Segundo Flora Süssekind, em Tal Brasil, qual romance?, o Naturalismo — estética literária aclimatada na Europa e que ganhou projeção no Brasil no último quartel do século 19 — continuou fazendo escola mesmo depois de Aluísio Azevedo, Adolfo Caminha, Domingos Olympio, Inglês de Souza, Domingos Olympio, Manuel de Oliveira Paiva e alguns outros nomes menos cotados. Em seu livro, a crítica literária menciona a continuidade desse estilo literário, destacando que existem raízes naturalistas nalguns escritores do “romance de 30” e em alguns autores de romances-reportagem da década de 1970.

Se nas obras naturalistas do século 19 a compreensão da sociedade se fazia por meio de justificativas biológicas, cientificistas, nalgumas produções romanescas da segunda geração modernista (José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos), considerada neonaturalista por Antonio Candido e Otto Maria Carpeaux, Süssekind detecta fatores econômicos que são utilizados para explicar fatores sociais. Enfim, ainda segundo a autora, a ótica adotada para enfocar a sociedade, na ficção da década de 1970, passa a ser a de feitio jornalístico — com marcas neorrealistas, neonaturalistas. Ignácio de Loyola Brandão, José Louzeiro, Aguinaldo Silva e João Antônio são alguns dos representantes desse estilo.

Em O Naturalismo no Brasil, cuja primeira edição é de 1965, Nélson Werneck Sodré já destacava que “a herança naturalista não está extinta, mas apenas deformada. Essa confrontação entre um passado aparentemente distante e um presente que pretende ser inteiramente novo e original em suas manifestações literárias, completa-se quando se constata o reaparecimento de velhas formulações, supostamente sepultadas”. Nesse sentido, Tal Brasil, qual romance? serve para endossar as palavras de Sodré.

Embora os romances de Nelson Rodrigues não componham o corpus de análise do ensaio de Flora Süssekind, eles bem que poderiam estar presentes por certas semelhanças com os “estudos de temperamento” de algumas obras do século 19, o retrato das mazelas sociais feito pelos escritores do “romance de 30” ou o realismo cru dos romances-reportagem de autores dos anos 1970.

O folhetinista
Obras como Meu destino é pecar, Escravas do amor (estes dois assinados por Suzana Flag, pseudônimo do autor), Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados e O casamento exploram o ciúme, o adultério e outros desvios que a hipocrisia das famílias brasileiras das camadas socioeconômicas superiores, de meados do século 20, procurava ocultar. Além do enquadramento naturalista, Nelson adota nestes romances uma perspectiva exagerada que descamba naquilo que Antonio Candido chamou de “literatura de carregação” ao discorrer sobre os romances folhetinescos dos românticos como Gonçalves de Magalhães, Pereira da Silva, Joaquim Norberto, Teixeira e Sousa e Joaquim Manuel de Macedo.

Há de se enfatizar, ademais, que Nelson aproveita acontecimentos reais de sua própria vida — como muitos relatados nas Memórias — para deles fazer aproveitamento ficcional. Não raras vezes amigos e desafetos do escritor aparecem em seus textos. Veja-se o caso de Otto Lara Resende, cujo nome compõe o próprio título de uma de suas peças. Outras pessoas de carne e osso também foram transformadas em personagens rodrigueanas. É o que sucedeu ao crítico e historiador de música popular brasileira José Ramos Tinhorão e ao jornalista Amado Ribeiro — este mencionado em Asfalto selvagem e personagem na peça O beijo no asfalto, aquele citado no romance.

Mas é sobre o Nelson folhetinista que as considerações aqui efetuadas vão se deter daqui em diante. Com o objetivo de mostrar este outro perfil do escritor, nas linhas seguintes é apresentada uma pequena sinopse das narrativas mencionadas acima, com o objetivo de oferecer uma ideia das principais temáticas abordadas nas obras e a vinculação que estabelecem com o folhetim e seus conteúdos fabulativos — que expressam uma “estrutura clássica de princípio-tensão, clímax, desfecho e catarse, destinados a mobilizar a consciência do leitor, exasperando a sua sensibilidade”, de acordo com as observações de Muniz Sodré sobre a literatura de massa.

Assim como outras obras do gênero, os ingredientes folhetinescos empregados por Nelson contam com “histórias de amor proibidas, mocinhas sofrendo provações, taras, traições, vilões, raptos e perseguições, (des)encontros entre pais e filhos, trocas de bebês e identidades, assassinos implacáveis”. Tudo isso misturado a algumas obsessões do escritor: traições, doenças, culpas, incestos, relacionamentos homoafetivos, violências físicas e simbólicas.

Os 78 capítulos de Meu destino é pecar foram publicados em O Jornal, um dos braços dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, de março a junho de 1944. Quando se tornou livro, houve uma redução para 39 capítulos. Nelson não assinou a obra com o próprio nome. Ele adotou o pseudônimo de Suzana Flag, uma suposta autora estrangeira inventada por Chateaubriand que serviu para alavancar as vendas do periódico. E a tática funcionou. Nelson conseguiu contornar os problemas financeiros que o incomodavam, embora já fosse o autor de Vestido de noiva (1943), peça que representa o acerto dos passos do teatro com as conquistas modernistas e ganhara avaliações positivas da intelectualidade. Suzana Flag assinou também Escravas do amor, Minha vida, Núpcias de fogo, O homem proibido e A mentira, publicados na imprensa diária.

Em 1949, Nelson criaria Myrna, outro pseudônimo para assinar seus folhetins e aposentar Suzana Flag. No cômputo total de obras de cunho folhetinesco, o escritor escreveria nove obras. A intimidade do autor com o gênero folhetinesco levou-o a escrever, em 1963, a telenovela A morta sem espelho, exibida na TV Rio, protagonizada por Fernanda Montenegro e Paulo Gracindo, com tema de abertura feito por Vinicius de Moraes e Baden Powell. Entretanto, com a novela de televisão, o escritor não teve sucesso.

Ao tratar dos primeiros folhetins brasileiros escritos no século 19, Antonio Candido salienta que a peripécia se sobrepõe às personagens. Em Meu destino é pecar, a “cinemática da história” é que importa. No prefácio ao livro de Suzana Flag, João Emanuel Carneiro — roteirista, autor de novelas e diretor de cinema — destaca que se trata de “uma história contada em pedaços, dividida em capítulos, pensada para capturar e segurar a atenção do leitor através de ‘ganchos’ que suspendem a história num ponto de tensão, num momento decisivo, gerando curiosidade e engajamento”. Tudo isso é recurso empregado nas atuais telenovelas — espécie de repaginação do velho folhetim oitocentista.

Resumir esse romance não é tarefa fácil, dadas suas características folhetinescas. Há várias tramas que se enovelam ao longo desta história narrada em terceira pessoa. O esqueleto da narrativa gira em torno de Leninha, que casa com o grosseiro fazendeiro Paulo, porque este tirou a família da jovem da ruína. Leninha tem nojo do marido bêbado e acaba se sentindo atraída por Maurício, irmão de Paulo. Além disso, paira sobre a casa sombria da fazenda a figura de Guida, a primeira mulher do fazendeiro que também teria se envolvido com Maurício. A trágica morte de Guida é sintetizada, na narrativa, como “um corpo sem vestido, apenas com farrapos ensanguentados”. Em torno do trio formado pela protagonista, o marido e o cunhado, orbitam dona Consuelo, a sogra, a misteriosa prima Lídia, Nana, a empregada negra, dona Clara, madrasta de Leninha, Netinha, que usa uma perna mecânica e é meia-irmã de Leninha, entre tantos outras personagens.

O sucesso proporcionado pelo primeiro romance-folhetim de Suzana Flag levou Nelson a apostar fichas noutra narrativa composta sob os mesmos moldes e levando novamente a assinatura da suposta romancista estrangeira. No fim de junho de 1944, no mesmo O Jornal, os leitores se depararam com o primeiro capítulo de Escravas do amor. E o fôlego de Suzana Flag era tão grande que lhe dava tempo, na coluna Sua lágrima de amor, enquanto degustava o sucesso de Meu destino é pecar, para responder a cartas de leitoras que queriam conselhos sentimentais.

Escravas do amor circulou no periódico até o fim de setembro de 1944. Ao longo de cerca de três meses, foram publicados 80 capítulos do romance. Dois anos depois, os episódios foram convertidos em 40 capítulos e adquiriu formato de livro. A fórmula de sucesso usada por Nelson não tinha nenhum segredo de polichinelo. Ele simplesmente ofereceu diversão a um público que já consumia folhetins nas novelas radiofônicas. Assim como nas radionovelas (e mais tarde nas telenovelas), os capítulos publicados nas páginas dos jornais sempre são encerrados no ponto mais alto a fim de manter o interesse do leitor pela continuação dos acontecimentos da narrativa. Trocando em miúdos, o binômio entretenimento-curiosidade funcionava como elemento de suma importância para prender a atenção do leitor. Isso revelava que o produto folhetinesco era economicamente viável e fazia as vendas do jornal de Chateaubriand dispararem. Bom para o empresário, bom para Nelson.

O enredo mirabolante de Escravas do amor — que conta com personagens sob suspeição, tramas amorosas, mistérios e crimes — não é diferente das outras do mesmo feitio que apostam no consumidor de narrativas folhetinescas. Os fatos envolvem a família Maia. Pouco antes de ser pedida em casamento, Malu (Maria Luiza), filha única dos riquíssimos Maia, é surpreendida pelo suspeito suicídio do namorado Ricardo. A morte do moço traz revelações a Malu: dona Lígia, a mãe, confessa à filha ter tido um romance com Ricardo. Uma das linhas centrais explorada pelo romance é o desejo de vingança de Malu contra a mãe — “[Malu] calculava como devia estar d. Lígia. ‘Deve estar louca.’ E a certeza de que a outra sofria era um estímulo para ela, uma satisfação cruel, um prazer muito agudo”. Mas não é só isso.

Bem ao gosto do universo trágico e de atmosfera naturalista das obras rodrigueanas, a desgraça se instala entre os Maia. Glorinha, uma das amantes de dr. Carlos, o pai, passa a morar na casa e causar incômodos. Existem suspeitas de que Malu matou o noivo e de que Ricardo tem um filho. Outras personagens com condutas estranhas povoam a narrativa. Neste segundo romance de tintas fortes, a hipocrisia e a fatuidade de uma família pertencente às classes sociais mais privilegiadas da sociedade brasileira são mostradas de forma desagradável.

Como a atriz e roteirista Dadá Coelho observa no prefácio, “dentro da requintada mansão dos Maia, a infelicidade reina, e não são poucas as vezes que seus moradores pensam na morte como um alívio para as dores que a bela fachada tenta esconder”. A trama de Escravas do amor é um verdadeiro quebra-cabeça que exagera, por vezes, em algumas partes não muito convincentes. Fatos e mais fatos se acumulam, se avolumam, a ponto de o desfecho ficar comprometido. O resultado é que o romance acaba pecando pela inverossimilhança.

Entre agosto de 1959 a fevereiro de 1960, no jornal Última Hora, Nelson publicou diariamente os capítulos de Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados. A primeira edição do romance veio a lume em 1961, em dois volumes, para dar conta da profusão de peripécias sucedidas no decorrer das duas partes da obra: Livro I: Engraçadinha, seus amores e seus pecados (dos 12 aos 18) e Livro II: Engraçadinha, seus amores e seus pecados (depois dos 30).

A divisão entre fatos da juventude e maturidade da personagem do título do romance mostra duas abordagens distintas. É exatamente isso que a doutora em Literatura Comparada e escritora Adriana Armony salienta, no prefácio ao romance, ao comentar que “enquanto o Livro I se imprime sob o signo do trágico, o Livro II (Depois dos trinta) se espoja no virtuosismo do cômico”.

Na primeira parte de Asfalto selvagem, os fatos ocorrem pelos idos de 1940 na provinciana capital do Espírito Santo. Como bem observa Armony, o andamento “remete à tragédia grega”. A narrativa apresenta um triângulo amoroso: o envolvimento da jovem Engraçadinha com seu suposto primo Sílvio, que é noivo de Letícia, amiga e prima da protagonista. Outros pontos altos no enredo do Livro I são o suicídio de dr. Arnaldo, pai de Engraçadinha, mexericos de que haveria uma relação incestuosa entre pai e filha, a revelação de que Sílvio é filho de dr. Arnaldo, o relacionamento incestuoso entre irmã e irmão, a paixão de Letícia por Engraçadinha, a figura de Zózimo — o marido “arranjado” por dr. Arnaldo para tentar salvar a desgraça familiar causada pelo relacionamento entre Sílvio e Engraçadinha.

Na segunda parte do romance existem “várias tramas paralelas enredadas e muito de crônica”, segundo Armony. A Engraçadinha “depois dos trinta” está casada com Zózimo, tem filhos e vive num subúrbio. Mas não significa que a tranquilidade dela esteja assegurada. No seu encalço, há o dr. Odorico, o juiz apaixonado. Letícia reaparece e passa a causar problemas na vida de Engraçadinha. Há um potencial incesto. Existe a situação inusitada de Zózimo, que nunca viu a esposa nua, salvo quando, certa vez, ele “colara o olho no buraco da fechadura” do banheiro e a espionara. A propósito, a ideia da nudez como interdição e angústia já está presente em algumas passagens de Memórias. Numa delas, Nelson anota: “É certo que, uma vez, eu vira uma demente nua. E a pobre, humilhada e feia nudez fora meu espanto e meu medo. Eu amava a minha professora. Mas não olharia pelo buraco da fechadura o seu banho”.

O casamento (1966) foi o primeiro livro a ser censurado durante a ditadura civil-militar brasileira, que vigorou de 1964 a 1985. Assinado por Nelson, o enredo deste romance trata acerca de Sabino Uchoa Maranhão, homem importante, entronizado nas camadas burguesas da sociedade, que obviamente valoriza a família, a tradição — ambas funcionando como máscaras que encobrem a verdadeira face hipócrita deste “homem de bem”. Na véspera de casamento da caçula Glorinha, Sabino fica sabendo, por intermédio de um amigo, que o futuro genro tinha sido flagrado beijando outro homem. Esta informação angustia Sabino, e ele se volta a fatos passados de sua vida, que acabam despertando nele sentimentos que põem a perder o pai de família respeitável.

No prefácio ao romance, a atriz e diretora de cinema Bárbara Paz observa que “Sabino se obriga a olhar para dentro de seu escritório, de sua casa, de sua cidade, de seus convivas e sobretudo para dentro de si, numa guerra incessante contra seus demônios — secretos e velados, é claro”. O resultado de tudo isso acaba repercutindo na mulher, nas filhas e em outros que estão à volta, pois “despem-se aos lapsos, de suas classes, cores, sexualidades, enfrentando enfim, mesmo que inconscientes (e muitas vezes de forma inconsequente), sua intimidade humana”. Este desvelamento de ocupantes das classes médias altas lembra os geniais versos de Mário de Andrade: “Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,/ o burguês-burguês! […]/ O homem-curva! o homem-nádegas!/ O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,/ é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!”.

No posfácio a este romance proibido, criticado e incensado por alguns intelectuais, Paulo Werneck, editor da revista Quatro Cinco Um, comenta que o teatro, os folhetins anteriores, as crônicas de A vida como ela é… e outros textos do escritor representam “um inventário de tabus, neuroses, preconceitos, perversões e crimes sexuais”. Todos estes elementos estão contidos em O casamento. Noutras palavras, assim como nas outras narrativas aqui discutidas, os comportamentos catalogados por Werneck sumarizam as características do folhetim, misturadas a elementos naturalistas, que impregnam a obra de Nelson.

Realidade e ficção
Postos lado a lado, há certa impressão de que os acontecimentos narrados em Memórias e nos quatro romances-folhetim contemplados neste texto parecem orbitar a esfera ficcional. Efetivamente, no plano da rememoração, alguns fatos reais da vida de Nelson beiram o absurdo, às vezes têm um quê de dramalhão. O que o escritor fez foi tirar proveito literário da proximidade entre realidade e ficção. Bastou a ele hipertrofiar alguns eventos da esfera pessoal transformando-a artisticamente, convertendo-a em peças, em crônicas, em romances.

Além deste entrelaçamento entre as reminiscências e a literatura de Nelson, o que se percebe nesses quatro romances-folhetim do escritor é uma bem-articulada junção de peripécias que cativam os leitores, tornando-os ávidos consumidores dos próximos capítulos de um texto que se apresenta muito próximo do que a vida lhes parece ser, já que são narrativas que giram em torno de atrativos como sexo e dinheiro, misturando-os a aspectos grotescos que pulsam reconditamente nas pessoas — elementos que representam uma radiografia bem interessante dos valores da sociedade na qual viveu o escritor.

Memórias: a menina sem estrela
Nelson Rodrigues
Nova Fronteira
336 págs.

Meu destino é pecar
Suzana Flag (pseudônimo de Nelson Rodrigues)
HarperCollins
496 págs.

Escravas do amor
Suzana Flag (pseudônimo de Nelson Rodrigues)
HarperCollins
528 págs.

Asfalto selvagem
Nelson Rodrigues
HarperCollins
512 págs.
O casamento
Nelson Rodrigues
HarperCollins
296 págs.
Nelson Rodrigues
Nasceu em Recife (PE), em 1912. Autor de 17 peças teatrais, é considerado um dos mais importantes dramaturgos brasileiros. Além de teatrólogo e homem de TV, foi jornalista, escreveu vários romances, contos e crônicas e atuou como comentarista esportivo. A atualidade do escritor é demonstrada pela contínua adaptação de seus textos para o cinema e televisão, obtendo constantemente grande sucesso. Morreu no Rio de Janeiro (RJ), em 1980.
Marcos Hidemi de Lima

É professor de Literatura Brasileira na UTFPR de Pato Branco (PR). Autor de Dança de palavras e sonsMulheres de GracilianoVárias tessituras. Escreve crônicas semanais para o Diário do Sudoeste, jornal de Pato Branco.

Rascunho