A um passo do abismo

Dez centímetros acima do chão, de Flavio Cafiero, encanta pela versatilidade do artifício narrativo
Flavio Cafiero. Foto: Mila Bertoluci.
05/05/2015

Dez centímetros acima do chão, de Flavio Cafiero, é um livro constituído de quatorze contos, todos bem diversos entre si, mas a força narrativa de cada um deles e as questões que podem desencadear tornam o livro homogêneo. Apesar de vivermos um momento em que a narrativa curta tornou-se subestimada para muitos editores, o texto de Cafiero é bem-sucedido em algumas inovações, sobretudo no aspecto formal. Como temática, seus enredos apresentam na maior parte a perspectiva do abismo, prestes a levar de roldão todos os personagens. E que tome cuidado também o leitor. Uma das razões da boa literatura é a capacidade de surpreender e de tornar nova cada questão, apenas pelo modo como é colocada. Observemos isso em cada um dos contos.

No primeiro, Estudos recentes, o narrador informa-nos sobre uma experiência de busca do prazer decorrente de certo namoro com a morte, “é que a baleia chega a aguentar noventa minutos sem precisar buscar oxigênio na superfície. Não desafia a vida, não é nada disso, brincar com as fronteiras é um prazer genuinamente humano”. Todo o desenrolar da narrativa apresenta o personagem discutindo a questão enquanto a mulher está submersa e sem poder respirar. Ele vai desfiando uma história comprida, numa espécie de diálogo. A passagem do tempo provoca nele uma excitação cada vez maior e mostra que a experiência não está necessariamente relacionada a quem vive tal momento, mas também ao ato de expor o outro ao perigo e depois ouvir sua experiência-limite.

O segundo conto, O atirador de facas, mescla culinária com uma vingança. Numa relação homossexual, aquele que não cumpriu a promessa é contratado anos depois para preparar um jantar. No desenrolar de sua tarefa, descobre o ex-amigo que se sente logrado, uma pessoa doente e perigosa. Um dos aspectos muito interessante neste conto é de natureza formal. Em notas de rodapé há um contra-conto, que dialoga e complementa a história principal.

Cão é outra narrativa que aborda o universo homoerótico. Há dois homens que se entreolham e aparentemente desejam-se. Como metáfora, os cães de uma cidadezinha relacionam-se entre si, assim como os seres humanos, até mesmo se rejeitando. Mulheres também desfilam no ambiente, mas é no amor entre os homens que a história fixa-se. A narrativa segue uma linha de sugestões, sendo convocado o leitor como um dos personagens a complementar a história.

O que, talvez, encante nos contos de Cafiero é a versatilidade do artifício narrativo. Em Visitante, o autor coloca em destaque um homem do povo como narrador, ele é uma espécie de guia turístico nativo, desses que pedem dinheiro após explanar sobre a beleza de parte de sua cidade, “uma contribuição espontânea, uma boa tarde para todos, e pro senhor também, alguém se sente estimulado a contribuir, alguém?” Neste episódio, Cafiero, mostra pleno domínio da variedade narrativa. Apesar das onze páginas que compõem a história, toda ela é apresentada em um só período, observando-se o ponto final apenas no seu encerramento.

Pungência
Não fale com o fantasma e Jesus e os terríveis são histórias que jogam presente e passado. Enquanto na primeira um homem frequenta um bar impossível de existir no momento presente (a palavra fantasma já remonta ao pretérito), na segunda o narrador descreve o momento em que, quando criança, destrói um objeto ornamental da sala de visitas da própria casa. O garoto apela ao seu imaginário, transformando Jesus, sua mãe e alguns apóstolos numa banda de rock. Este diálogo, entre o tempo em que o narrador conta a história e o tempo em que ela aconteceu, torna-se o estopim que desencadeará o desequilíbrio, isto é, o poético, produzindo uma pungência que transcende a narrativa.

Cavo varo descreve um caso de necrofilia, também com um narrador em primeira pessoa falando a linguagem daqueles que trabalham nos institutos médicos legais da vida. Um homem muda de turno porque chega um “grampo”, vocábulo que designa cadáver no necrotério público (talvez comparação do ser humano aos animais comestíveis expostos antes da comercialização). Conto corajoso e muito bem-sucedido, não recomendado a pessoas sensíveis.

Os pulgões e Manual do homem do tempo são histórias marcadas pela solidão. O que fazer depois de se ver abandonado pela pessoa que a gente ama? Em ambos há uma espécie de esperança, de solução. Esta pode surgir a partir da imagem de uma criança que desce de elevador, no colo da mãe, e acena ao personagem, ou através do desaparecimento de uma praga que mata pouco a pouco as plantas no apartamento.

O conto mais forte e mais revelador é o que dá nome ao livro, decisão acertada, já que o próprio livro concorreu ao prêmio Cidade de Belo Horizonte com outro título. Nesta pequena narrativa de seis páginas assistimos a um adolescente conversando com seu cão. Dentro da família, o animal de estimação parece ser o único interlocutor que ele possui. E não se trata da vida de um rebelde sem causa. O que pega o leitor de surpresa é o que o rapaz está prestes a fazer. Sem querer desmerecer as outras histórias, este conto vale por todo o livro, e deve ser lido com bastante atenção.

O conto final, A uhtima aventura do erohi — episohdio 13 (é assim mesmo a escrita), apresenta uma aparente brincadeira, que deve, no entanto, ser vista com muita seriedade. Na literatura contemporânea, muitos autores abandonaram a experimentação, talvez por certo temor (tão vanguarda ainda o modernismo, vide Miramar e Macunaíma), talvez pela necessidade de comercializarem seus livros. Mas, aqui, Cafiero envereda por um caminho tentador. A história é ambientada num futuro distante, período de tempo suficiente para a língua portuguesa ter mudado substancialmente, sobretudo na sua grafia, e o conteúdo versa sobre um texto do passado, escrito provavelmente no início do século 21 e encontrado por pesquisadores. Através de notas de rodapé (elas sempre estão presentes no texto de Cafiero), editores e organizadores do tal futuro discutem que espécie de texto é aquele que receberam para a publicação. Nos debates, uns dizem que se trata de um roteiro de reality show, enquanto outros afirmam ser o exemplo mais peculiar da literatura da época (literatura “uber-pohs-moderna brazileira”). Logo no início do conto, na “nota do editor”, está escrito: “nesta edisaum espesiau para leitores, foram mantidos os erhos e/ou neolojismos encontrados no documento orijinau, asim como as regras ortograhficas e gramaticais vijentes na ehpoca, incluindo o uso de asentuasaum grahfica, e todos os recursos de destaqe utilizados pelo autor, como caixa auta e subliniados”. Em seguida vem o texto escrito com a linguagem do nosso tempo, e sempre as notas com a escrita do tempo futuro.

No panorama da literatura atual, os contos deste autor carioca revelam-se ousados, procurando temas prementes e mesmo desagradáveis — assuntos sobre os quais não desejamos pensar muito. Cafiero não segue o hiper-realismo gratuito, presente e esgotado em muitos autores que clamam pela autoexposição. O que consegue, de verdade, é voltar ao conceito original de literatura (perdoe-me a redundância), discuti-lo e mostrar que tal definição é sempre provisória. Ela equilibra-se sobre um fio tênue, um passo em falso e o abismo, prestes a tragar não apenas esta impossível arte feita de palavras, mas todo o universo da cultura.

Dez centímetros acima do chão
Flavio Cafiero
Cosac Naify
160 págs.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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