A solidão por vales e vilas

Os contos de Absolutamente nada apresentam a prosa poética, suave e delicada de Robert Walser
Robert Walser. Foto: Divulgação.
04/05/2015

Com a publicação de Absolutamente nada e outras histórias, o leitor brasileiro tem acesso agora a 41 narrativas breves do suíço Robert Walser em língua portuguesa. A seleção dos contos se orienta pela edição nova-iorquina Farrar, Straus & Giroux, Selected Stories, concebida por Christopher Middleton, de 1982, mas a tradução parte da edição Suhrkamp. Vale observar, todavia, que uma literatura de Absolutamente nada, tão bem vinda ao nosso idioma, demandaria um prefácio condigno mais circunstanciado, para além da excelente orelha do livro, que contém biografia do autor, escrita por Matilde Campilho. Do mesmo tradutor,  Sérgio Tellaroli, é a versão disponível do romance Jakob von Günten — um diário, publicado em 2011 pela Companhia das Letras. Em ambos os casos a tradução, de fato, logrou obter em português o precioso efeito de suavidade, que é a virtude preponderante na linguagem desse escritor de língua alemã. É uma qualidade que caracteriza tanto a linguagem como igualmente sua forma de ver o mundo com humor sutil, como quando descreve as flores que anunciam a primavera, as Campainhas-de-inverno:

Vi campainhas-de-inverno. Vi-as em jardins e em cima da carroça de uma camponesa a caminho da feira. Quis comprar um buquê, mas julguei que não convinha a um homem tão corpulento como eu adquirir algo assim, tão delicado.

Walter Benjamin prefere chamar a atenção para certa inconsistência, displicência na linguagem de Walser, que anula o que se escreve para destacar o ato de escrever. Para ilustrar essa marcante brevidade, recorre à anedota sobre os escritores suíços Arnold Böcklin, seu filho Carlo e Gottfried Keller, que habitualmente se sentavam juntos à mesa de um café. O laconismo dessa roda de amigos se tornou lendário. Certo dia, como de costume, todos estavam em silêncio. Em dado momento, o moço comentou que estava quente; quinze minutos depois seu pai completou “e não tem vento”. Passado algum tempo, o escritor Keller se levantou dizendo “não consigo beber com gente tagarela”. Um pudor linguístico tipicamente camponês, cujas figuras se nutrem do vigor das árvores, dos ruídos da natureza e emergem também do mito, como personagens de contos maravilhosos.

Robert Walser foi encontrado morto na neve por algumas crianças justamente no Natal de 1956. Morrera durante uma de suas caminhadas. Essa informação não é aleatória, considerando que Walser se tornou conhecido pelos hábitos de andarilho; ele com frequência fazia longos passeios a pé pela floresta, pelas trilhas, ou pelas cidades onde viveu: Biel, Thun, Winterthur, Berna, Solothurn, Munique, Berlim etc. Sua literatura muitas vezes dá testemunho disso, como no conto Pequena caminhada, no qual um narrador descreve as montanhas num dia úmido e cinzento. Um ou outro caminhante, algumas crianças cruzam por esse homem caminheiro, muito além disso ele não vivencia em sua passagem pela estradinha rural: “Não é preciso ver nada de muito especial. Já se vê tanta coisa”.

Indolência indescritível
No conto A rua, por sua vez, o narrador descreve a agitação da rua numa cidade grande, onde as pessoas andam sem cessar às pressas e, ao que tudo indica, às cegas. Observando esse turbilhão ele reflete que tal rapidez não tem sentido e não passa de “uma indolência indescritível”. Considerações como essa, referentes à vida atribulada das grandes cidades, Walser deixara anteriormente registrada num dos textos do livro Drei Feuilletons, “Ich wanderte in ein Städtchen” (passeando por uma cidadezinha), que creio ainda não traduzido: “alegria nos parece algo mais precioso que nunca, mas nós cometemos talvez um grave equívoco nos perturbando por causa dela que não ama a turbação. Essa pressa contém uma lentidão gigantesca e morosa. Se nós fôssemos mais tranquilos, mais lentos, assim estaríamos melhor… ” O protagonista do romance Jakob von Günten faz também descrições físicas da paisagem e considerações bem próprias nas passagens e digressões sobre suas andanças. Ele apresenta a vida na cidade — mais que isso — a vida do homem pequeno na cidade grande, agora usando chapéu, comentando o tempo de maneira blasé, com reserva, diferentemente do modo vivaz, genuíno e pleno de chistes amigáveis do homem campesino que vive no seio mais familiar.

A esse tipo de homem simples que migra ao centro urbano, não somente um nome, mas talvez até mesmo uma peça do vestuário, o casaco, atribui singularidade. Relevante nesse ponto seria mencionar a novela de Gogol, O capote, que conta a história de Bashmachki, funcionário medíocre que conquista a dignidade a partir do momento quando veste um sobretudo. Gogol inaugura com sua novela um veio literário que trata de uma peça simbólica do vestuário, um elemento capaz de conferir singularidade ao homem comum: Carl Meyer escreveu o roteiro para o filme Der letzte Mann (o último homem, que no Brasil foi batizado de A última gargalhada), que Murnau dirigiu em 1924, com a história a respeito do porteiro de um hotel de luxo que se vê destituído de sua condição humana ao perder a função e por conseguinte a bela casaca brilhante; Franz Tumler escreveu uma novela homônima em 1959 abordando uma experiência semelhante do personagem Sr. Huemer (e as antológicas ilustrações de Alfred Kubin complementam essa narrativa) etc. Os pequenos textos de Robert Walser demonstram similar sensibilidade ante elementos do mundo, objetos e suas equivalências simbólicas: uma mala de viagem, um relógio de bolso, uma pedra de cascalho.

W. G. Sebald iniciou seu ensaio O caminhante solitário — em memória de Robert Walser chamando a atenção para o quão tênues foram os rastros biográficos deixados pelo escritor suíço que não possuía livros, nem mesmo os que escrevia, móveis ou mesmo um endereço certo. Assim como se despojava de bens materiais, se apartava do convívio com as pessoas, mesmo de seu irmão Karl Walser, que foi cenógrafo do teatro Max Reinhardt e ilustrador de livros, e da irmã, a professora Lisa Walser. O ensaio de Sebald é sui generis, na medida em que empreende uma simbiose entre a própria biografia e a de Walser a partir de traços da postura do caráter do avô e do escritor, e aponta coincidências que funcionam como liames dessa profunda admiração, açambarcando não somente a poesia, mas a personalidade modesta e admirável de Robert Walser.

A história Kleist em Thun, de Absolutamente nada, fabula sobre a temporada do escritor Heinrich von Kleist, de Frankfurt an der Oder na ilha do Lago de Thun, na Suíça, em 1802. Aos 24 anos, o escritor do norte da Alemanha efetivamente, conforme revelou em correspondência de 18 de agosto de 1802 à noiva Wilhelmine von Zenge, deixou Paris decepcionado com os hábitos que não via coadunados com os ideais de Rousseau e Voltaire, e se instalou perto de Thun no convívio com pescadores para viver como camponês. Walser cria um narrador que confessa talvez conhecer bem a região, pois trabalhou ali numa cervejaria. Claro que passados tantos anos fica difícil saber exatamente, mas ele imagina como Kleist teria chegado ali, atravessando uma pontezinha à procura de hospedagem. E então o narrador se investe da busca do poeta Kleist pela comunhão de corpo e alma com o espírito natural daquele vale dos Alpes.

Absolutamente nada e outras histórias
Robert Walser
Trad.: Sergio Tellaroli
Editora 34
167 págs.
Robert Walser
Nasceu em Biel, na Suíça, em 1878. Um poeta celibatário, andarilho, vagabundo, escrevia em pedaços de papel e, segundo Max Brod: “um dos maiores poetas da Suíça — lírico, contista — não suportou o movimento do mundo e se internou voluntariamente num hospício de Berna em 1929, tendo sido transferido para uma instituição de Herisau em 1933”. Morreu em 1956.
Maria Aparecida Barbosa

Professora de Literatura e tradutora do alemão.

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