A escrita do fim do mundo

Sobre furacões, homem de Neandertal, mudança climática e sonhos cada vez mais vívidos
Ilustração: Paula Calleja
30/04/2020

1.
Outro dia passou por aqui um furacão. Literalmente. Tornou-se o grande assunto na mídia alemã, um furacão que vindo do Norte, atravessaria o país, e Colônia estava prevista como uma das principais cidades em seu caminho. As escolas fecharam, compromissos foram adiados, muita gente não foi trabalhar, toda a cidade em alerta. No final, o furação foi bem menos impressionante do que as chuvas no Rio de Janeiro ou o dia que se fez noite em São Paulo, mas ficou a lembrança do momento em que fui até a varanda salvar umas plantas esquecidas e me deparei com o cheiro de mar, a umidade, o furacão nem havia aparecido ainda, mas já trazia com seus primeiros ventos, um pouco do mar do norte. Quando ele finalmente chegou em Colônia, já era de madrugada e eu dormia sonhos intranquilos que se esvaíram logo ao despertar.

2.
Aqui perto fica o museu do homem de Neandertal (Neanderthal Museum). Uma dessas improváveis coincidências. Há tempos o Homo sapiens neanderthalensis faz parte dos meus interesses aleatórios, costumo pensar em sua extinção, especialmente no fato de ele ter habitado a Terra por mais de 300 mil anos antes do sapiens sapiens surgir. Sabe-se que após meros 40 mil anos de sapiens (coexistência após o sapiens se espalhar para fora da África), o homem de Neandertal acabou. Essa sombria coincidência. Sabe-se que tinha domínio do fogo, cuidava dos velhos e doentes, criava artefatos, cumpria rituais funerários. Sempre me pareceu no mínimo curioso alguns cientistas afirmarem que o fim do homem de Neandertal se deve, entre outras possibilidades, ao fato de ele não ter sido capaz de criar ficção. Mas, afinal, o que é a morte além de uma grande ficção? Talvez a maior de todas. Penso no último remanescente, o último homem de Neandertal olhando para seu mundo que se acabava.

3.
Sabe-se que as baleias têm linguagem (inclusive dialetos) e que os elefantes choram seus mortos. Nada é natural na natureza.

4.
A primeira vez que li a palavra Antropoceno foi num artigo do jornal The Guardian, que apresentava o filósofo Timothy Morton como uma das principais vozes desse novo período geológico, o profeta do Antropoceno. Fiquei sabendo que Timothy Morton trocava cartas com Björk. É possível acessar online essa correspondência, numa delas Björk diz (em caixa baixa, tenho especial simpatia por quem escreve em caixa baixa): “I feel in many ways we icelandic people are a bit different from usa and england somehow we missed out on the industrial revolution and modernism and post modernism and are now coming straight from colonialism (…).” Me pareceu que fazia sentido, esse intercâmbio.

5.
O Antropoceno é o nome da (nova) era geológica que estamos vivendo, caracteriza-se pela atual e incontestável capacidade humana de destruir o planeta e tudo o que há nele (incluindo a si próprio), alguns datam o fim do Holoceno (era geológica anterior e que durou quase 12 mil anos) no início da Revolução Industrial, outros preferem a tese da grande aceleração, que põe o fim do Holoceno na explosão da primeira bomba atômica, no deserto do Novo México. Quem viu o último Twin Peaks vai se lembrar do impressionante episódio oito quando essa mesma explosão atômica libera o espírito maligno que dará todas as dores de cabeça ao agente Cooper e a quase todo o resto do elenco. De certa forma, o que fizeram foi nada mais nada menos do que dar um nome científico para o que antigamente chamávamos de fim do mundo. Então é isso, o mundo vai acabar, ao menos o mundo como conhecemos. E junto com esse ocaso, entra em crise também a mentalidade vigente: a razão cartesiana ocidental colonialista binária (poderia acrescentar mais alguns adjetivos…), e nada mais será como antes. Mas como ao contrário do que possa parecer, sou otimista, acho que há sempre luz no fim do túnel (ao menos luz ao sul da tempestade!), e essa crise nos traz a oportunidade de lançar um novo olhar sobre o que sempre esteve ali, mas não queríamos enxergar: as visões de mundo indígenas, afro-brasileiras, amefricanas (como diria Lélia Gonzalez). Diante da difícil tarefa de repensar conceitos como humanidade, natureza, cultura, subjetividade, são justamente as culturas e cosmogonias marginalizadas as que podem nos oferecer soluções, insights e apontar caminhos a seguir. Ao menos luz ao sul da tempestade.

6.
Em Frankfurt, esteve em cartaz uma exposição chamada Trees of Life, com o subtítulo narrativas para um planeta deteriorado. O objetivo era criar um diálogo entre ciência e arte, o que inclui diversos saberes: física, biologia, ecologia, artes visuais, literatura, e a pergunta principal era, quem somos? E especialmente que relação é essa entre natureza e civilização? Afinal, o que é o ser humano? Um animal como outro qualquer? Um ciborgue? Um sonho? Um corpo humano? Esse corpo que, segundo os cientistas, abriga apenas 43% de células humanas. Porque, sim, nem mesmo o corpo humano é tão humano como pensávamos.

7.
Algumas frases que sempre me acompanham: O inconsciente está organizado como uma linguagem (Lacan); A literatura é o sonho acordado da Civilização (Antonio Candido); Os grandes escritores são aqueles que inventam os seus leitores (Ricardo Piglia).

8.
Durante a sua longa passagem neste mundo (500 mil em oposição aos nossos 200 mil anos), o Homo Neanderthalensis aprendeu a fabricar artefatos (caça e pesca), e deixou nas cavernas no sul da Espanha, além de conchas perfuradas que um dia foram parte de um colar, rastros de imagens, desenhos, essas coisas que costumamos chamar de arte. Depois descobriram, os cientistas, sempre eles, que nossa porcentagem de DNA neandertal pode chegar a até 4% em alguns casos. Ou seja, essa herança continua em nossos genes, lembrando-nos que apesar de nossas vaidades, sim, somos nós, mas também somos um outro.

9.
Releio A queda do céu, de David Kopenawa. Um livro lindo e triste e urgente. Trata-se de um longo depoimento dado pelo xamã yanomami ao antropólogo francês Bruce Albert. Leio a versão em português, que é a tradução da tradução da transcrição. Quer dizer, a fala de Kopenawa originalmente em yanomami, foi transcrita e traduzida para o francês (o livro foi publicado inicialmente na França), só depois saiu em português. Me parece bonita essa inacessibilidade linguística, que representa de alguma forma, nossa inacessibilidade a esse mundo. Como numa caverna de Platão, nos chegam sombras de uma imagem inatingível, mas, ao contrário do que imaginava Platão, um original que não há, que é verdade fragmentada, opaca, ambígua, contraditória. Observo com atenção: o xamã yanomami nos avisa, se acabar a floresta o céu vai cair sobre todos nós. É uma profecia.

10.
O fim do mundo é um cenário que se estende também a outras áreas como política, artes, cultura, e obviamente, também à literatura. E então, após muitos desvios, chego finalmente onde queria chegar: como fica a literatura, este sonho acordado (ensueño, Tagestraum) da civilização se a própria civilização está sendo questionada? Seja pelo novo-mundo tecnológico que se abre, seja pelo antigo mundo que retorna. Como escrever em tempos tão urgentes e estranhos? Como escrever sobre nós se cada vez sabemos menos quem somos? Como escrever sobre um mundo em acelerada transformação, escrevemos e já não é, e de novo, já não é, a cada frase. Em outras palavras, num mundo cada vez mais incerto, mais irreal, como retratar a realidade?

11.
Timothy Morton desenvolveu o conceito de hiperobjetos. Hiperobjeto seria uma estrutura que ultrapassa o tempo e o espaço, como por exemplo, o aquecimento global. Não vemos o aquecimento global ou suas consequências de uma vez, por isso, para muitos ele pode parecer inexistente. O aquecimento global se estende além de nós e provavelmente permanecerá ainda muito tempo depois de desaparecermos. Gosto de pensar no livro como um hiperobjeto, o livro não apenas como algo que guardamos na estante, mas um acontecimento que inclui uma série de pessoas: o autor, editor, revisor, capista, artista que pintou o quadro que serve de imagem de capa. E depois do lançamento, livreiros, os leitores do livro, que com sorte, pode se estender por décadas, com mais sorte ainda, ainda mais. Todas as leituras e todas as vidas que o livro afetou, transformou, tocou, os amores e ódios que suscitou, as resenhas, os posts no Instagram, depois as traduções, tradutores, outras leituras, o livro e tudo o que reverbera na vida do autor, as pessoas que ele encontra, os eventos, as dedicatórias, os amores, às vezes transposições para o cinema ou teatro, as atrizes, atores, cenários.

12.
Em Há mundo por vir?, de Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, há um trecho sobre o conceito yanomami de humanidade e natureza. Para os yanomami, o humano precede o mundo. Antes do mundo havia o espírito humano, depois, parte desses espíritos foram se transformando em rios, pedras, montanhas, animais, e alguns que sobraram permaneceram na sua forma humana. Ou seja, tudo que existe é humano, guarda sua alma humana. E não nós, ápice da criação, separados da natureza. Há tempos penso nas possibilidades da escrita, de uma literatura deslocada do sujeito, onde tudo tem voz, o rio, a chuva, a floresta, o trovão, e até as capivaras. Uma escrita mais próxima do sonho, do transe, da alucinação, do que (ainda) não sabemos que sabemos. Não um livro que escrevemos, mas um livro que nos escreve. Uma literatura que se dá na compreensão (e humildade) que não somos nós que a sabemos, mas é ela que nos sabe.

13.
Sonho sonhos cada vez mais vívidos. Acordo sem certeza de onde estou. Sonho que um furacão vai passar pela cidade de Colônia e que ao sair para a varanda, sinto o cheiro de mar. Sonho que o furacão é uma entidade, um sujeito outro, a entidade me entrega um colar de conchas, eu me enfeito e me reconheço, enfim, no reflexo das águas.

Carola Saavedra

É autora, entre outros, dos romances Flores azuis (eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte), Paisagem com dromedário (Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor), O inventário das coisas ausentes e Com armas sonolentas. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Desde 2019, é professora e pesquisadora na Universidade de Colônia.

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