Uma das boas novidades editoriais de 2024, a reedição das Obras reunidas de Hugo de Carvalho Ramos passou praticamente despercebida. O fato não chega a surpreender. Carvalho Ramos, apesar de sua importância literária, está inserido na longa lista do “panteão dos esquecidos” da literatura brasileira. Morto ainda jovem, aos 25 anos, em 1921, deixou um livro de contos, Tropas e boiadas, lançado em 1917, tão clássico quanto pouco acessível. Tinha preparado uma segunda edição, lançada em 1922 pela editora de Monteiro Lobato. Com mais de um século de existência, a inclusão do livro no volume I de Obras reunidas é sua quinta edição.
O que faz de Tropas e boiadas um clássico? A resposta estaria em dois preceitos escritos por José Américo de Almeida no preâmbulo de A bagaceira, romance lançado em 1928 que abriu as porteiras do mundo para um novo movimento literário, o chamado Romance de 30. Oswald de Andrade preferia falar nos “búfalos do Norte” que invadiam os cercados literários. Enfim, diz José Américo: “A Língua Nacional tem rr e ss finais… Deve ser utilizada sem os plebeísmos que afeiam a formação. Brasileirismo não é corruptela nem solecismo. A plebe fala errada; mas escrever é disciplinar e construir…”.
Um pouco antes, no mesmo texto, José Américo alerta que “o regionalismo é o pé-de-fogo da literatura… Mas a dor é universal, porque é uma expressão de humanidade. E nossa ficção incipiente não pode competir com os temas cultivados por uma inteligência mais requintada; só interessará por suas revelações, pela originalidade de seus aspectos despercebidos”.
Vale lembrar que a expressão pé-de-fogo diz respeito às conversas descontraídas e descompromissadas de tropeiros e escoteiros à beira de fogueiras. E condenar o complexo de vira-lata expressado nos dizeres do paraibano, afinal, mesmo em 1928, nossa literatura não era lá tão incipiente assim.
Certamente Américo, que não chega a praticar a “Língua Nacional” em seu romance, esqueceu o tratamento que escritores como Machado de Assis, José do Patrocínio e, mais dentro do chamado “regionalismo”, Simões Lopes Neto e Rodolfo Teófilo vinham há muito dando aos seus romances e contos. Também Hugo de Carvalho Ramos trabalhou nesta trilha em seu Tropas e boiadas, em 1917, onzes anos antes de A bagaceira.
A esse grupo, tirando Machado e Patrocínio, claro, e incluindo Monteiro Lobato e outros, se convencionou chamar de pré-modernista, um conceito até hoje polêmico. Massaud Moisés prefere não tocar no assunto e Carlos Nejar, em sua monumental História da literatura brasileira, opta por classificá-lo como uma espécie de segunda fase do simbolismo, onde o gênero clássico se refinara com temáticas mais locais e linguagem mais próxima ao popular, e aí inclui Mário Pederneiras e Olegário Mariano.
Vanguardas
Fato mesmo é que Simões Lopes, Rodolfo Teófilo, Augusto dos Anjos e, claro, Hugo de Carvalho Ramos, em meio a toda essa discussão, sobrevivem como espécies de hiatos literários escrevendo na linha das vanguardas, no cerne de uma moenda que triturava um linguajar empolado, lusíada, para resgatar do limbo o palavreado mais próximo do dizer cotidiano e tupiniquim. Mesmo Augusto dos Anjos, em seu cientificismo, transitou por esta vereda, o que se comprova na leitura de estrofes como: “bati nas pedras dum tormento rude/ e a minha mágoa de hoje é tão intensa/ que eu penso que a Alegria é uma doença/ e a Tristeza é minha única saúde”.
Enfim, melhor é esquecer estes enquadramentos e se deixar levar pelo prazer das leituras.
Voltando a Hugo de Carvalho, o escritor traz para o cenário literário os vagos goianos, e o que era Goiás então? O ermo. Desde que secaram os veios de diamante e ouro, pelo início do século 19, que a região ficara praticamente isolada do resto do país que, a rigor, concentrava-se na faixa litorânea.
O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire esteve em Goiás por volta 1819 e conta em um de seus diários que, chegando à província pelo Triângulo Mineiro, conheceu um fiscal de renda que estava havia seis anos sem receber salário, completamente esquecido pelas autoridades da Corte do Rio de Janeiro. E J. A. Leite Moraes, avô de Mário de Andrade, ao descrever uma viagem de São Paulo a Vila Boa de Goiás, entre dezembro de 1880 e janeiro de 1881, fala de uma odisseia digna de um romance do realismo mágico, de uma paisagem desolada, povoada por cobras, matos e insetos. Aqui e acolá encontrava-se um pouso de tropeiros e gado.
Sol ardente, continuação do precedente; a estrada tortuosa, rodeando as cabeceiras das águas alastradas de cristais. Entramos num chapadão de léguas, sem água e sem uma sombra! Sol e sede devoradora, cansaço e animais estafados; as mesmas paisagens de todos os dias; caminhos sem moradores, campos sem reses, aqui e ali um atoleiro de engolir toda a caravana! E não recuamos; os paulistas teimosos afrontam o sertão, o sol, a chuva, o rio, a lama, e não conhecem dificuldades.
Leite Moraes, junto com seu secretário, Carlos Augusto, pai de Mário de Andrade, viajara para assumir a presidência da província de Goiás.
Hugo de Carvalho, enfim, conheceu bem estes trágicos caminhos reais. Durante a infância e a adolescência costumava acompanhar o pai, o juiz Manoel Lopes de Carvalho Ramos, que era também poeta, em viagens pela comarca. Da lembrança destes encontros com a gente goiana nasceu o principal dos relatos de Tropas e boiadas.
De início, no entanto, diga-se que Hugo de Carvalho não faz relatos sociológicos, antropológicos. Para o poeta Afonso Félix de Sousa, também goiano, “parece natural nele a maestria em transfigurar vida e fala dos sertanejos, em pintar com fortes pinceladas cenários do interior goiano, restituindo-nos tais elementos numa linguagem saborosa e viva, plena de colorido e sugestões”. Isso é fato. Toda sua narrativa está marcada por uma inventividade lúcida e coerente.
E como tinha alma boa, ajudou-o a enterrar o rapaz, e passou ali ao pé do fogo o resto da noite, embrulhado no pala, bebericando café, que o velho veio aprontar, e procurando consolá-lo e entretê-lo com seu proseado fácil de mestiço imaginoso. — Eh gente!, ia agora a matutar, sertão — escola do mundo.
É o sertão vivo em paisagem e linguajar.
Naturalmente esta verve desagua em outras tantas literaturas. “Feliz que a aboiada era de muitas criações já decadentes, uns bois velhos caxingando, uma vacada sonsa que já não estava somando com mais nada. Se fosse tudo boiecos, ainda na fúria da pouca idade, aqueles peões não teriam dado conta de atravessar o comércio sem acontecer uma desgraceira, de jeito nenhum”, conta-nos Carmo Bernardes. “Numa cidade sem segredos as notícias pulam cerca, varam parede, passam de janela a janela, de boca a ouvido com a maior presteza em conversas descansadas. (…) Cada um vive exposto a olhares atentos que se fingem de distraídos. Assim era também Manaraírema”, no dizer de José J. Veiga. “Em Goiás, os anos corriam e Carvalho mofava na pasmaceira da comarca, pobre e esquecido. Brevemente os filhos estariam moços e ficariam por ali sem instrução, casando com roceiros bestas, enquanto ele e sua ambição se anulariam no comodismo, no atraso do meio, como um outro doutor Hermínio Lobato”, relata Bernardo Élis.
Esse era, e talvez ainda seja, o Goiás que se estende por outras paragens, como os sertões mineiros. João Guimarães Rosa traz em sua obra todo esse clima de aparente pasmaceira, um universo que, como num lago, constrói na profundeza sua permanente ebulição. conta Rosa no conto Arroio-da-Anta:
Aonde — o despovoado, o povoadozinho palustre, em feio o mau sertão — onde podia haver assombros? Trouxe-se lá Drizilda, de nem quinze anos, que mais não chorava: firme delindo-se, terminavelmente, sozinha viúva. Descontado que a esquecessem. Ela era quase bela; e alongavam-se-lhe os cabelos. A flor é só flor. A alegria de Deus anda vestida de amarguras.
O leitor atento pescará diálogos constantes entre Rosa e Hugo de Carvalho. Expressões como nonada e tutameia, tão caras a Rosa, por exemplo, são encontradas em textos de Hugo de Carvalho.
Em Santa Rita, um arrieiro deu-lhe notícias seguras da estadia do nagoa em Caldas Novas — vendera-lhe a besta de sela por uma tutameia, com o produto adquirira na loja do Gaudêncio uma garrucha niquelada e dois cortes de chitão enfestado, que ofereceu à roxa com quem se metera aqueles dias à entrada do povoado.
E em uma das crônicas de sua Miscelânea lê-se: “prazeres e alegrias, tudo isso fumo, poeira, nonada, que se dissipa ao mínimo esforço de calcular-lhe a impressão, na meia tinta crepuscular do passado vislumbrada!”
Já dicionarizadas, diga-se, nonada é a corruptela de não é nada e tutameia de tuta e meia, ou seja, um valor muito baixo, uma insignificância.
Memória preservada
Por todas estas questões, a reedição de Obras reunidas de Hugo de Carvalho Ramos é de grande importância. Ela nasce para suprir um vago que vem desde 1950, quando a editora Panorama, de São Paulo, também em dois volumes, a editou. A sistematização do livro foi feita pelo irmão de Hugo, Victor de Carvalho Ramos, que guardou o acervo do escritor e dedicou a vida a falar dele e preservar sua memória.
Tropas e boiadas, que abre os volumes, é apontado sempre como o ponto alto da obra de Hugo de Carvalho. E realmente é um livro-monumento. Reúne treze contos e a novela, Gente da gleba. Uma explosão de realismo social. O cineasta e historiador Lázaro Ribeiro de Lima assevera que “adentrar o sertão de Goiás pelos escritos de Hugo de Carvalho Ramos é encontrar, entre árvores baixas do cerrado, matas, rios, gente e suas glebas, o mais genuíno regionalismo. Hugo deixou gravado seu nome não só em algum ‘tronco novo de jenipapeiro’ (…), mas na história e na literatura brasileira; influenciou futuros regionalistas, como o mineiro João Guimarães Rosa, e encantou outros escritores que o leram, como, entre tantos, Mário de Andrade, Lima Barreto e Monteiro Lobato, que reeditou, no ano 1922, a única obra de Hugo de Carvalho Ramos: Tropas e boiadas”.
Com a tampa do baú levantada por seu irmão Victor, descobriu-se muito mais que os contos e a novela publicados no volume de 1917. E que seu autor foi um tanto mais além do mero regionalismo. Há uma universalidade no texto que não pode ser desprezada. O sofrimento e as crenças das gentes de Goiás descritos são inquietantes e intensos. E atingem pessoas de todo mundo, enfim. Certamente entre o cerrado e a Sibéria muda mesmo e somente a intensidade do calor e do frio. Os escritores tidos e havidos como regionalistas entenderam bem isso e falaram de suas searas arrancando do chão a universalidade de almas marcada pelos fogos das injustiças e das felicidades, também. Em cada página escrita, Graciliano Ramos e Erico Verissimo, e ficamos apenas nestes dois gigantes, nos contam de homens que, no sertão ou no pampa, espelham o mundo todo.
Aliás, o termo regionalismo também está cercado de polêmicas. Segundo o escritor e crítico Assis Brasil, “para alguns críticos, toda a literatura brasileira é regionalista, pois sempre esteve na preocupação dos autores a necessidade de escrever acentuando as características nacionais, principalmente as expressões linguísticas”. No entanto, continua Assis, “com o aparecimento de escritores como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Armando Fontes, a literatura brasileira de ficção passou, mais acentuadamente, a explorar os aspectos ‘regionais’ da linguagem interiorana, termos locais, expressões muitas vezes só conhecidas no meio rural. O ‘instinto de nacionalidade’ mais se acentuara então, às voltas ainda com o aspecto de denúncia social, da ideologia política”.
O poeta e crítico literário Ricardo Domeneck, no texto Ingás e pequis: Localismo e modernidade em um poema do goiano Hugo de Carvalho Ramos, incluído no Obras reunidas, dá asas à polêmica.
Nosso intuito é apontar aqui a grande complexidade na discussão de um termo crítico como regionalismo, que muitas vezes usamos de maneira simplificadora. É ainda uma questão de poder: o que se federaliza? O que se regionaliza? É um desafio de toda nação agigantada como o Brasil, mas que pode ser visto em países como a Rússia, a China e os Estados Unidos.
Domeneck tem suas razões, mas o fato é que a crítica em geral quase sempre impingiu a pecha de regionalista nos autores que queria, talvez até involuntariamente, menosprezar. E, verdade mesmo, a maioria desses autores falou de homens e sentimentos. E homens e sentimentos em si são universais.
O livro de Hugo de Carvalho traz esta vertente, fala do homem inserido em seu microcosmo, mas com sentimentos e angústias universais.
Um tropeiro sacou, do piquá que trouxera a tiracolo, o pinho companheiro dessas caminhadas no sertão; apertou a chave da prima e pigarreou pelo cordame um lundu, todo repassado de ais e suspiros. — Cabra malvado, traz tristeza essa viola — disse alguém, o pensamento longe, perdido no arraial, onde deixara, certo, saudades e cuidados; diga antes um caso, daqueles que nos contava, quando da boiada do Antão…
Seus personagens são, principalmente, a gente mesmo do Goiás antigo, um povo de falar típico, mas encrustado num universo de injustiças e penúrias, o mando naturalmente com os grados, com aqueles que detinham o poder nascido das terras, da vastidão de antigas sesmarias, fazendas abertas na ambição do ouro e consolidadas na pata do gado.
Apertando a sobrecincha encarnada por sobre o pelego da boa sela mineira, o Benedito dos Dourados enfrentou a mula rosilha e espalmando satisfeito a mão no lombilho dos arreios, voltou ao paiol da fazenda, onde a camaradagem se entretinha ferrada no truque. — Morro abaixo, morro arriba, urrando como guariba, truco no meio, barriga de coeio — berrava o Malaquias, um negralhão espadaúdo, primeiro braço de foice e machado em derrubadas e demais eito de roça. — Estou de forma! Retrucou Joaquim da Tapera, um cafuzinho pernóstico de garofinha e barba rala, agregado do sítio.
Como os escravos e os bois traziam na pele a marca de seus donos, eles, os goianos descritos por Hugo de Carvalho, traziam no nome a designação da gleba onde mourejavam. Viviam numa espécie de prisão a céu aberto, cadeia gradeada pelas contingências do destino e do dinheiro.
Tudo isso dentro de um ambiente preservado em sua brutalidade.
Ao lado da Estrada Real e à sombra espessa duma gameleira centenária em cujos esgalhos finos cantava em épocas de sazão a passarada, e arquitetavam o ninho gentil os povis e tiês mimosos de papo fulvo e penugem azulejada das campinas, ficava a venda da bruxa dos Marinhos, assim como a nódoa minúscula e alvinitente duma rês branca, sobre o fundo verde-dourado da imensa malhada que eram aquelas paragens. Avultava ao longe, mal dobrassem o cotovelo brusco duma serrota de alourejada coma de capim-melado e moitas de murici cheiroso, na várzea aberta dos buritis virentes que espanejavam, à fresca das manhãs veranejas, a sua flavela esguia e revoluteante de folhas, toda arqueada e gemebunda aos afagos do vento.
Homens, bichos e plantas se entranham num só panorama, numa natureza bravia, cerrado preservado, de terra árida marcada pela pata do gado, caminhos por onde se construía uma outra civilização: a cultura das solidões e das resistências. Um tempo muito distante, antagônico aos campos do agronegócio que hoje domam a região.
Tragédia cotidiana
Nestes espaços antigos se desenharam as crenças daquela gente, verdades marcadas pela piedade cristã, mas também alinhavadas pela ponta de punhais, pela bala de carabinas. O isolamento levou estes sertanejos a se defenderem com os próprios braços e a conviverem com a tragédia cotidiana, como contam Artur Neiva e Belisário Pena, falando de espaços ferrados pela miséria intensa, num contraponto às descrições dos literatos.
Nós, se fôramos poetas, escreveríamos um poema trágico, como a descrição das misérias, das desgraças dos nossos infelizes sertanejos abandonados. A poesia das paisagens e dos panoramas, ficaria apagada pela tragédia, pela desolação e pela miséria dos infelizes habitantes sertanejos, nossos patrícios. Nossos filhos, que aprendem nas escolas que a vida simples de nossos sertões é cheia de poesia e de encantos, pela saúde de seus habitantes, pela fartura do solo, e generosidade da natureza, ficariam sabendo que nessas regiões se desdobra mais um quadro infernal, que só poderia ser magistralmente descrito pelo Dante imortal.”
Monteiro Lobato, ao descrever esse mesmo panorama trágico em seu Jeca Tatu, dentro do livro Urupês, de 1914, recebeu críticas avassaladoras dos, digamos, “poetas patrióticos”. E chegou a se defender: “Jeca Tatu não é assim. Ele está assim”. Feliz, no entanto, foi Hugo de Carvalho. Quando do surgimento de seu livro, em 1917, também eivado de críticas às condições sociais de seus personagens, já o mundo entendia melhor as verdades que denunciava.
Também sua prosa vinha de certa forma suavizada pela linguagem lúdica, quase onírica em sua originalidade, rebuscada mesmo.
Mecês devem estar lembrados que na altura dos Marinhos, num estirão de meia légua de tabatinga e terra puba, fica um cemitério abandonado, há muita toca de tatus e camundongos-do-campo. Semana atrás, numa rusga de cachaça e mulheres, esticara a canela ali perto o Bentinho Baiano, um cafuzo intrometediço, baleado por dois tiraços de rifle na volta esquerda da pá.
Entre dramas, tragédias, risos e antecipações vive, enfim, uma gente determinada. E essa gente, com sua lida, verve e linguagem, é que faz a grandeza imensa de Tropas e boiadas, como aponta a professora Albertina Vicentini:
Ler Hugo de Carvalho Ramos (…) é apontar possíveis sentidos de sua obra e colocar em questão tanto uma obra partícipe de uma sociedade e dos problemas de uma época, impressa em artigos, poemas em prosa ou em contos, ou de um exímio narrador da literatura brasileira, que antecipam outros regionalistas, notadamente Graciliano Ramos (no discurso indireto livre) e Guimarães Rosa (com o seu Riobaldo, narrador difuso e desorientado). A leitura também vale para recuperar uma memória histórica e social de um solo goiano que se modificou e, para o que vale a constatação, de um passado que ainda não passou, ou a comparação com um passado que se modificou a ponto de se tornar um outro irreconhecível hoje.
A reedição da obra esparsa e a revelação dos inéditos de Hugo de Carvalho Ramos, coligidos e organizados por seu irmão Victor, dizem o tanto que ele transitou por outras vertentes, enfeixadas ao longo dos dois volumes agora republicados, e confirmam os dizeres da professora Albertina. Vale lembrar, no entanto, que estas páginas são o que restou dos incêndios constantes que o autor destinava ao seu trabalho. Muito do que escreveu, num gesto de autocrítica rigorosíssimo, ele próprio se encarregou de queimar ou destruir.
A poesia
A maioria da poesia de Hugo de Carvalho, por exemplo, ficou inédita, e, por uma espécie de milagre, foi salva dos incêndios críticos do autor. Parte foi publicada em jornais, mas sempre mereceu seu arrependimento posterior. Em suma, renegou tudo que escreveu em versos, como viria a fazer Graciliano Ramos, mas, ao contrário do alagoano, há no goiano uma estrutura poética sólida. Transitou pelo parnasianismo, com versos bem estruturados, rimas fortes, métrica perfeita. No entanto, por sua retórica ligada ao íntimo, à religiosidade, à metafísica filia-se definitivamente ao simbolismo.
Glória serena e redenção de uma alma
que no martírio conquistando a palma,
e da treva emergindo à grande luz,
transfigurada sobe ao céu extremo
do sol de Deus na paz do bem supremo,
despregada afinal da sua cruz!
O sentimento religioso não se afina apenas ao cristianismo, tão natural em quem foi criado sob a luz da igreja católica. Há versos, entretanto, onde flerta serenamente com outras vertentes religiosas, e até com o paganismo greco-romano.
E a alma pagã alçando o colo
para na luz se embevecer,
trêmula vê em seu Apolo
Dionisio-Baco aparecer.
Em verdade sobressai nos poemas a tentativa de entender as angústias do Homem, um ser de renúncias e decisões.
Que seria de ti, ó geração escrava,
chorando eternamente a Luz e Amor passados,
se não subisse ao céu a efervescente lava
dos Humildes, dos Bons e dos Iluminados?!
São vários os pontos onde as questões simbolistas surgem. “Para que, na assonia do Nirvana,/ dissolvido no Todo o coração,/ chore a saudade da miséria humana.” No entanto, o apelo telúrico parece ser irresistível, e ele escuta quando “trilos de cigarra explodem na chapada!”, e vê quando “o pequizeiro da chapada/ a flor começa a derrubar,/ lá vai de noite uma veada/ de vez em quando merendar”. São cantigas de amor, quase canções de amigo medievais, poesias de tons populares, bem ao gosto de Fernando Pessoa que também soube ser telúrico. Ou seja, um poeta derramado da terra de onde surgiu.
Escritos esparsos
Outros caminhos do polígrafo constroem um pensamento livre e consciente. São textos reunidos sob o título geral de Escritos esparsos que ele deixou mais ou menos organizados em cinco partes.
A primeira delas, Miscelânea, crônicas de forte princípio parnasiano, escritas como poemas em prosa, dialoga com poetas trágicos como Antônio Nobre e Álvares de Azevedo. E traz o espírito pessimista, escudado em fortes cores religiosas, contraditoriamente eivadas de descrenças, bem ao gosto da geração do princípio do século 20. Sem esquecer que tudo se deitava com amores irrealizados, platônicos.
Morriam os últimos tons na palheta policroma do ocaso. Tu, assentada à base de cimento daquela ponte metálica por onde daí a pouco correria o expresso, tinhas no olhar o reflexo sideral dos estelários que iam, lento e lento, acendendo as suas lâmpadas de ouro azul-turquesa daqueles céus imotos de Minas.
Ou seja, o famigerado spleen baudelairiano também grassou por aqui, com uma pitada de saudosismo trágico. “Quem relembra, sofre; sofre duplamente: pelo esforço empregado, pela colheita obtida.”
Segue A esmo…, onde as crônicas dialogam com as leituras intensas do escritor, e já abre dizendo a que veio.
Vinha da cidade. Dia verlainiano, desse cinzento triste e brando, sugerindo a cadência decadente e simbolista dos versos daquele bardo tão amigo de Moréas e Rimbaud.
São textos que passeiam por campos e várzeas, numa espécie de parnasianismo tardio, mas já totalmente tomado pela angústia dos renovadores da arte literária, com encontros constantes com Byron, Schopenhauer, Nietzsche, pensadores mais realistas e implacáveis, o que demonstra ter sido Hugo de Carvalho um leitor amplo e inquieto. E novamente surgem as frondas de Goiás.
Pobres olhos tristonhos! Inocência sertaneja, à espera dum Taunay encantado, a bosquear o seu perfil de virgem pálida, a esse palor das noitadas de luar albente de minha terra!
Hinário é um tributo ao simbolismo, uma reflexão sobre o passar da vida e seu sentido, em um ambiente claramente inspirando em Álvares de Azevedo e sua famosa taverna.
Em serão, reunimo-nos eu e uns poucos amigos; e noite adiante, a bater as portas da antemanhã, ficamos a filosofar em questões comezinhas da vida burguesa ou razões de alta transcendência, no tédio negro do ócio espiritual e vagabundo, sobre mulheres e no amor. (…) Vida telepático, de sonâmbulo, esta que carrego.
E daí nascem amores inúteis, vãos, porres de ópio, degradação de uma juventude sem horizontes para quem a Arte é uma “prostituta vil que perdeu a correção de linhas, a firmeza helênica de contornos, à impressão venal de mil beijos dos lábios torpes de amantes profanos”.
O sentimento mais místico é retomado em Turris Eburnea; torre de marfim, expressão que na tradição cristã pode ser lida como símbolo de pureza. Aqui o narrador se encontra com o mais forte sentimento de suas crenças, e este sentimento passa pela fé do catolicismo, mesmo mantendo certo ceticismo, pois seu monólogo se dá à sombra da lua, longe da solarização dos dias.
Se apertava a febre, trespassavam-me o peito legiões sinistras de Íncubos, afogava-me o desejo de aspirar éter — o Éter puro — bem longe da imunda atmosfera terrena; e sucumbindo à crise, retorcia as mãos suarentas e glaciais abafando clamores de dominado, e reavivamentos atônitos de luz nas órbitas cansadas… (…) E a torre prosseguia, no desequilíbrio dos hemisférios, mundo abaixo, vazia.
Finalmente em Últimas páginas volta-se para as coisas mais cotidianas. São crônicas que falam do prosaico, como o futebol nascente em contrapartida ao bete, um esporte tão de Goiás.
Despreza-se, ou antes, envergonha-se sistematicamente de tudo que é inconfundivelmente nosso; procura-se adotar o exótico, quer em altas, quer em comezinhas manifestações da atividade coletiva.
Neste caminho surge um Goiás mais voltados às tradições das cavalhadas e das Festas do Divino, de personagens quase folclóricas, como Sebastião Epifânio a brincar na dança do índio e no quebra-bunda. Um ambiente quase lúdico, maculado pela mesquinharia da baixa política. Hugo de Carvalho tem uma visão edulcorada de sua terra, sim, mas protesta e grita contra o esquecimento em que ainda, mesmo no princípio do século 20, era relegada pelo resto do país.
Obras reunidas se abre ainda para dois gêneros literários vistos como menores, Correspondência e Artigos, mas que, neste caso, são fundamentais para melhor entender este intelectual tão intenso que morreu jovem, aos 25 anos.
A parte dedicada à Correspondência, gênero perdido com as novas tecnologias, trazem cartas escritas para a família e para amigos, e revelam uma alma em profunda contradição, apontando sonhos de futuro, mas sempre descrente de sua capacidade em realizar tão imensa proeza. “Não tenho aqui amigos nem confidentes, passando geralmente por excêntrico, esquisito, filósofo e algumas vezes mesmo… maluco!”, conta para uma irmã sobre sua vida solitária em Vila Boa de Goiás.
Os sete Artigos, colhidos em antigos jornais e revistas pelo irmão Victor, são textos de reflexões, de temática diversa. Vão desde as intrigas do meio artístico até a análises literárias mais concretas, passando por debates envolvendo questões culturais, políticas e sociais. Fala aqui o cidadão que, como escritor, mantinha a capacidade de enxergar com critérios críticos definidos o mundo a sua volta.

Intelectual orgânico
Quem foi Hugo de Carvalho Ramos, enfim? Ele próprio se definiu à lua.
Nasci lunático. Em mim, só desperta a imaginação ascendendo a lua noctívaga o quadrante, a cicatrizar — Irmã hospitaleira que é — as chagas roxas da minha Dor, nos asperges balsâmicos de sua luz santa.
Em termos reais, nasceu na Vila Boa de Goiás, atual Cidade de Goiás, em 1895, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1921. Contista, cronista e poeta sabia manipular as palavras em favor de suas crenças mais íntimas. Iniciou cedo na carreira literária, mas em vida publicou apenas Tropas e boiadas, em 1917, e artigos e poesia esparsos na imprensa. A coletânea de contos de inspiração sertaneja mereceu referências elogiosas da crítica nacional. Um dos grandes entusiastas de seu trabalho foi o cronista João do Rio. Era, enfim, um intelectual orgânico.
Eternamente angustiado, não suportou as exigências naturais da vida. “Bendito seja quem de antemão é votado ao seu próprio aniquilamento!” Talvez tenha pensado nisso quando se enforcou. Deixou uma obra densa, fundamental e importantíssima. Indiscutivelmente, não se pode ver Goiás, mesmo hoje, sem o olhar refinado de Hugo de Carvalho Ramos.