À beira de outra noite?

Com ares de ensaio, romance de Roberto Elisabetsky se divide em três partes que revisitam momentos tensos da política brasileira
Roberto Elisabetsky, autor de “Um dia esta noite acaba”
01/07/2022

A literatura, muitas vezes, investe na representação documental de um período histórico ou político. Na verdade, é um meio de mostrar o seu poder, ainda que, em momentos de confrontos, bibliotecas sejam fechadas e livros e outros artefatos culturais saiam de cena ou mesmo sejam queimados em praça pública. Mas ela, a literatura, sempre resiste; volta ao palco, e mesmo que se pensasse tudo perdido, livros são pragas positivas que ressurgem e se multiplicam. Vilões são sempre vilões, os textos não se enganam.

Um dia esta noite acaba é um romance construído em dois planos. O primeiro é o dia do comício pelas eleições diretas para presidente, realizado em São Paulo, em 25 de janeiro de 1984; o outro, em forma de flashback, é a história de alguns ativistas políticos que lutaram pela liberdade e pelo sonho.

O livro é dividido em três partes, cada uma delas corresponde a uma fase da vida brasileira que se instalou desde às vésperas de 1964 até os sinais de que a democracia poderia estar de volta. Anoitece, Noite adentro, Amanhece. Na última, a surpresa se instala, porque o amanhecer não corresponde somente à vida política brasileira, mas também ao despertar de determinados personagens.

Poderíamos dizer que, dada a todas as informações que o texto proporciona, trata-se mais de um ensaio, com todas as liberdades que esse gênero permite, do que um romance. Predominam os fatos históricos, as biografias, e a reafirmação sobre o caráter criminoso da ditadura militar, e ainda todas as consequências maléficas que ela causou, consequências estas que se estendem — infelizmente — até os nossos dias.

O romance de Roberto Elisabetsky é uma obra que também vem resgatar os percalços vividos não apenas pela esquerda brasileira, mas por todos aqueles que lutaram pela justiça.

Num espaço de doze horas, do anoitecer daquele 25 de janeiro de 84, aniversário da cidade de São Paulo, Fernanda, uma mulher de meia-idade, tradutora, é surpreendida com a transmissão pela TV do comício das Diretas Já. Seu filho, de vinte e dois anos, publicitário bem-sucedido nos negócios numa idade ainda tenra, acaba de chegar à casa e zomba da mãe, ao ouvir o convite que ela faz para que ambos assistam ao comício. Ele diz que está preocupado com os próprios negócios, a política para ele sempre será a mesma, por mais que se mudem os presidentes. Não passa muito tempo, entra Tomaz, importante executivo de uma multinacional americana, marido de Fernanda. Os três passam a conversar sobre o comício e sobre a política do país, enquanto se preparam para sair e jantar num restaurante francês. A conversa, no entanto, é interrompida por uma personagem que chega de repente, trazendo notícias de outros tempos. A narrativa, a partir desse ponto, assume características teatrais, apresentando unidades de tempo, de ação e de lugar.

Em capítulos alternados, somos informados sobre a luta política que vinha acontecendo desde o governo João Goulart, passando pelo golpe de 64, pelo endurecimento de dezembro de 1968 com o AI 5, a luta armada, guerrilha, torturas, mortes e exílio.

O autor apresenta bom domínio da arte narrativa, construindo um romance que capta a atenção do leitor, informando fatos esquecidos por muitos cidadãos de hoje, que falam bobagens nas redes sociais sem terem estudado a história do Brasil recente.

Muitos dos dados perfilados pelo autor, assim como se perfilam os militares, já estão presentes em outros livros que abordam a ditadura. No entanto, sempre é importante voltar a tais temas. Um deles é a contribuição financeira que muitas empresas nacionais e estrangeiras praticavam para sustentar órgãos paramilitares que não tinham orçamento no âmbito dos ministérios aos quais pertenciam. Estão lá os nomes de algumas empresas e o que seus executivos à época diziam. O episódio, embora pareça destoar, faz lembrar um livro de Hanna Arendt, Eichmann em Jerusalém, quando este personagem achava perfeitamente normal o nazismo e as atitudes que tomara como responsável militar à época. As desculpas dos dirigentes brasileiros, tanto na área civil como na militar, são muito semelhantes. A única diferença é que aqui todos foram absolvidos.

Reconstituição
Para o autor do romance, deve ter sido difícil escrever um livro ambientado numa época que já ficou para trás, reconstituindo cenas ocorridas na USP, nas ruas de São Paulo, no âmbito do movimento estudantil, no convento dos dominicanos, no Araguaia, no Chile e até em Paris. Tais cenas vêm à tona pela voz da personagem que interrompe a tranquilidade de uma família que habita um bairro nobre da capital paulista.

O governo militar que se instalou no poder a partir de abril de 1964 e permaneceu por um quarto de século fez de tudo para calar o que acontecia nas universidades, nas salas de espetáculos, nas páginas dos livros. O poder militar foi utilizado como poder policial, o objetivo era calar aqueles que tinham a função de nos alertar, de nos proporcionar consciência crítica. Mesmo que se diga que tal governo surgiu no contexto da geopolítica internacional de Guerra Fria, os crimes cometidos por agentes do estado, agentes pagos pelo contribuinte, precisam ser cobrados. Já que não se pode devolver vidas usurpadas, é possível ainda condenar os criminosos. O fato de muitos já estarem mortos não os isentam da condenação diante da História. A verdade sempre reaparece, por mais que alguns não a desejem.

Autores como Roberto Elisabetsky são importantes para a literatura. Deveriam continuar mergulhando a fundo em outros períodos da história para trazerem à público personagens e eventos capazes de formar a consciência política do cidadão. Hoje, num universo onde reina a imagem fugaz, a opinião sem fundamento e as inverdades, somente a literatura, com seu poder de persuasão e a capacidade de criar reflexão, é capaz de tal proeza.

Filmes são importantes, séries televisivas rendem muito dinheiro para autores e realizadores, ganha-se nisto o que não se ganha nos livros. No entanto, quando outra noite pode estar se avizinhando, só a literatura para dizer a verdade, sem manipulação e com destemor.

Uma última questão séria que o livro coloca, uma questão que sempre nos moveu, é que sonhos demoram para se transformarem em realidade. Às vezes, nunca se transformam. Muita gente pensou que a volta da democracia resolveria todos os problemas do Brasil. Mas não foi assim que aconteceu e não é assim que marcha a História. Ela também apresenta contramarchas, e estas durarão tanto tempo quanto maior a ignorância. Quando grande parte da população de um país é letrada, a justiça se dá de forma mais eficaz. A literatura pode ser um meio de consciência histórica e estética sobre o tema, além de desenvolver o tão já discutido espírito crítico.

Um dia esta noite acaba
Roberto Elisabetsky
Boitempo
246 págs.
Roberto Elisabetsky
É dramaturgo, tradutor e roteirista de cinema e TV. Formado na Universidade de São Paulo e na London Film School, é mestre em comunicação pelo New York Institute of Technology. Foi professor do curso de Rádio e TV na ECA-USP. É autor de Take 2 (1992), A última coisa (2015) e Cadafalso (2019).
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

Rascunho