Parecia só mais uma prestação de contas. Livro antigo, já sem o apelo de matéria em jornal, aqueles caraminguás que nem pagam o chope. Mas um dado, até então inédito no relatório semestral da editora, chamou a atenção: “Total inutilizado: 847”.
A palavra “inutilizado” significa “danificado”, “destruído”. Denota, também, algo imprestável ou sem utilidade. “A poesia é a virtude do inútil”, disse certa vez Manoel de Barros, de modo que a conexão entre um conjunto de textos e a inutilidade pode até fazer sentido, se permeada pela dimensão poética. As acepções dos dicionários, no entanto, não me bastaram. E fui apurar.
Primeiro escrevi email, depois mandei mensagens no Whatsapp. Enfim, telefonei. Acabei por descobrir que os 847 exemplares de meu livro tinham virado mesmo papel picado.
Embora muita gente não saiba, trata-se de uma praxe no meio editorial, sobretudo entre os grandes selos. O problema, na maior parte dos casos, é material. Com o tempo, o papel se deteriora. Seja por simples amarelamento, seja pelo trabalho das traças, que desconhecem o modo figurado da expressão “devorar livros”.
A questão pode ser também meramente física. Como os depósitos não comportam mais exemplares, a editora precisaria providenciar um segundo, ou terceiro, repositório, o que pesaria no custo de manutenção. É preciso abrir espaço para os novos livros que chegam. E eles nunca param de chegar.
Em 2016, causou espanto a notícia de que a Cosac Naify, então às vésperas de fechar as portas, iria picotar grande parte de seu catálogo. Muita gente indagou por que não entregar aqueles livros a seus autores, caso se dispusessem a recebê-los. Ou simplesmente doar a bibliotecas públicas.
A Cosac se baseou num problema contábil para fundamentar a anunciada trituração. Segundo a editora, uma doação implicaria investimento elevadíssimo, já que há a obrigação de se registrar esse tipo de movimento, com o devido reconhecimento de seu custo. Como a quantidade de livros era imensa, o resultado financeiro se revelaria insustentável, sobretudo para uma empresa já com problemas de caixa. Quanto a repassar os livros sem custo aos autores, a explicação foi que contratualmente não seria possível, restando a opção da compra com desconto.
Em geral, é essa a alternativa apresentada. Ou os livros vão mesmo para a fragmentadora de papel.
Minha editora — que não era, nem é a Cosac — respondeu com uma boa justificativa. Impressos em 2006, os exemplares estavam em péssimo estado, sem condição alguma de aproveitamento. Coisas da vida. Mas o espanto de ver, na frieza de um relatório, a aniquilação de 847 livros não arrefeceu.
Talvez porque remonte às tantas queimas promovidas ao longo da história. Da dinastia Qin, da China de 213 a.C., ao imperador asteca Itzcóatl, no século 15. Da Inquisição católica à Alemanha hitlerista. Lá, por questões morais, políticas ou religiosas. Cá, por causa monetária.
Por mais que sejam compreensíveis as razões apresentadas pelas editoras — elas são negócios e visam ao lucro, não nos esqueçamos —, a violência do ato se impõe. E, bem ou mal, falamos de publicações que demandaram enorme investimento. Tanto do escritor, que se dedicou ano após ano para chegar ao melhor texto possível, quanto da empresa, que arcou com a revisão, a preparação, a diagramação, o design de capa, a impressão. O que me leva a pensar se não deveríamos, autores, editores e agentes, buscar um modelo que garanta a preservação das obras sem gerar prejuízo para quem as publicou. Sem dedos apontados, intransigência ou lacração de rede social, proponho: vamos parar de destruir livros?