Uma comichão

Escrever ficção é uma maneira de estar no mundo, uma força impetuosa, mesmo que exaustivo quase sempre
Ilustração: Marcelo Frazão
06/11/2023

Se você olhar no dicionário, o significado literal de comichão é “sensação cutânea desconfortável que leva  um indivíduo a coçar ou friccionar a pele”. Já o sentido figurado é “desejo veemente, tentação”. E como a gente já está com o dicionário na mão mesmo, vamos dar um pulinho em veemente, só pra conferir: “que possui uma força impetuosa, intenso, ardente”.

Pois bem. Esse ano foi louco (o anterior também), eu tô completamente exausta (você também, né?) e eu tinha me prometido que assim que terminasse o meu romance, eu ia descansar. Sossegar. Fechar o notebook (sentido figurado) e não escrever nenhuma linha de ficção. Por pelo menos um ano, mas o ideal mesmo é que fossem dois. Foi em agosto que eu entreguei o manuscrito para o meu editor. Se passaram só três meses. Noventa dias. O texto nem chegou de volta pra mim. E dia desses (ontem) eu me peguei pensando qualquer coisa como “e se eu escrevesse só um continho” ou (hoje) “e se eu anotasse rapidinho aqui essa ideia pra um livro” ou ainda (agora) “e se eu retomasse aquele romance que eu interrompi em dois mil e dezesseis, eu gostava dele, foram as circunstâncias e ele tinha potencial, não tinha”?

Não tinha.

Mas não é sobre ele que eu quero falar.

É sobre a comichão.

Essa sensação cutânea desconfortável (ou não tanto) que leva um indivíduo (eu) a coçar (escrever) mesmo quando sabe que não deve (porque precisa descansar). O desejo veemente. A tentação. A força impetuosa, intensa, ardente. O não saber viver sem. E a melhor parte: o ver beleza nisso. Sim, porque ainda que cansada, ainda que absolutamente sem tempo (sem forças), a ideia me animou. A possibilidade de abrir um arquivo novo, uma página branquinha, um umbigo inteiro ali, qualquer coisa que se possa ser a partir daquele momento e pra sempre depois, criar um mundo ou sete ou noventa, uma pessoa ou todas, deletar o que se detesta.

Respirar.

E depois tudo de novo.

Porque é isso que a gente faz. Porque é assim que a gente sabe.

Escrever pode ser um trabalho meio chato de vez em quando. Exaustivo quase sempre. Mas enquanto houver essa força e, principalmente, enquanto houver o espanto no gesto, escrever vai ser um dos meus lugares no mundo, força impetuosa e eu prometo nunca mais prometer ficar longe disso.

Marcela Dantés

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1986. Lançou em 2016 a coletânea de contos Sobre pessoas normais (Patuá). Seu primeiro romance, Nem sinal de asas (Patuá), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2021 na categoria Melhor Romance de Estreia e do Prêmio Jabuti 2021, na categoria melhor Romance Literário. Em 2022, lançou João Maria Matilde, pela Autêntica Contemporânea.

Rascunho