Hoje tive que preparar o café da família, levar meu filho Matias na escola, comprar-lhe duas calças (porque ele cresce mais que a taxa da Selic), ir à farmácia, esquentar o almoço (cozinhar, não consigo, mas sou craque na requentação), pagar boleto, lavar louça, fazer compras no sacolão, lidar com a burocracia do PNLD, escrever um contrato e, o mais difícil, tentar receber um reembolso da Amil.
No fim do dia, disse para mim mesmo: “Como a vida atrapalha! Eu podia ser um escritor muito melhor se só escrevesse!”.
Mas, no instante seguinte, mim mesmo me respondeu: “Bobagem. Sem a vida você nem escreveria”.
Pensei um pouco e concordei comigo. A vida não é separada da escrita. É tudo o mesmo angu. Sem a vida, eu, por exemplo, jamais teria escrito o Castelos, que fiz a partir das histórias que contava para meu filho dormir. E, sem que meu avô me levasse para ver Independência ou morte, em 1972, eu provavelmente não teria escrito O Chalaça, porque foi lá que conheci o personagem.
Aquela ideia de “Preciso me isolar numa fazenda para escrever minha obra-prima” é autoenganação. O momento e o lugar perfeito não existem. Ainda mais juntos. O que faz alguém escrever não é ter uma legião de empregados que fazem todos os trabalhos para que lhe sobre tempo.
Então, satisfeito com meu raciocínio, disse para mim mesmo: “Escrever é uma questão de prioridade. Em alguma hora do seu dia, você encontra tempo. Ontem, por exemplo, escrevi durante a aula de futebol de Matias (quando ele não estava jogando, é claro)”.
E, novamente, mim mesmo ponderou: “Também não é assim. Se se trabalha demais, não sobra energia para escrever. Tanto que você só fez O Chalaça quando ficou desempregado”.
Não é fácil discutir com a gente mesmo, porque a gente mesmo sempre sabe tudo o que a gente fez. Então dei-me razão e falei: “Tá, é verdade… Precisei ficar desempregado para começar a escrever meu primeiro livro. E, além disso, tive que sair de um ótimo emprego (assessor de imprensa do prefeito David Capistrano, em Santos) para conseguir acabá-lo. A vida pode atrapalhar um bocado”.
— Atrapalha mas não determina — disse-me mim mesmo.
— Atrapalha mas não determina — concordei comigo.
— Agora que chegamos a um consenso, vamos parar de escrever e viver um pouco? Tem uma mulher bonita lá na sala chamando a gente para ver o último capítulo de O eternauta.
Nem acabei a frase e