Crônica indigesta

No restaurante, o pedido feito por meio de um famigerado tablet transforma a vida em algo impessoal, frio e mecânico
Ilustração: Eduardo Mussi
10/05/2025

Já começo essa prosa afastando, de início, qualquer aproximação com algo saudosista, algo do passado, de um mundo antigo. O que vamos pensar juntos é um caminho para vivermos de forma mais agradável, mais humana e gentil e, claro, menos aborrecida e, por consequência, mais divertida.

A experiência indigesta se deu num restaurante aqui em Santos, a minha aprazível cidade praiana. Sim, eu reclamo de barriga cheia. Vou poupar o local e ocultar seu nome, pois não é um problema exclusivo dele — é um novo jeito desagradável de viver que está se implantando bem debaixo de nossas papilas gustativas.

Lá fomos nós, num domingo, almoçar num lugar amplo, com evocações à vida campestre e simpático aos produtos orgânicos. Nos sentamos e começa o estranhamento — nenhum garçom ou atendente nos apresenta um cardápio, uma pequena explicação sobre a casa, sobre a missão, ou até mesmo aquela dica do dia, do chef, aquele peixe que está perfeito recém-recebido. Nada. Só havia aquela trambolho, aquele tablete com o tal de QR code. Nos olhamos e nada. Então já vi que era eu e aquilo, aquela maravilha da tecnologia. Lá fomos nós, quatro pratos, entrada, bebidas, telas sem fim, até terminar o pedido com um final silencioso e, para mim, sempre com uma nuvem de insegurança — será que virá de maneira correta o que pedimos? Pois não veio. Apesar de termos feito tudo certo, um dos pratos não veio. E era justamente o prato mais simples, o que tinha como base uma salada. Três começaram a comer e uma pessoa não. Chamei a atendente e ela monossilábica disse que estava vindo. Dei uma olhada pro chef, a cozinha é daquelas abertas, conceito de se ver o pessoal em ação, mas acho que ele não gosta muito do conceito. Enquanto eu buscava o contato, ele virava pro outro lado. A salada com um salmão grelhado chegou e, claro, almoçamos sem pressa. No andamento mais tablete para pedir mais um refrigerante, mais tablet para uma sobremesa e mais para dois cafés e a conta.

Veio um rapaz com a máquina de cartão, paguei e saímos, nenhum diálogo com ninguém, ninguém!

Impossível para um livreiro que pensa sobre o nosso futuro, o futuro das livrarias principalmente, não ter uma impressão ruim dessa experiência. Claro que fiz as conexões entre as livrarias impessoais e os restaurantes impessoais.

As redes de livrarias que se deslumbraram com o autoatendimento, o self-service, o papo de deixar o leitor livre, leve e solto… e abandonado. Essas livrarias em bom número se enfraqueceram ou fecharam as portas. O afastamento do leitor, a impessoalidade, a falta de conversa, a falta de opinião sobre o que se vende — isso tudo vai minando o local e a sua força, a sua reputação e laços construídos com seus frequentadores.

E volto a bater na mesma tecla, não do teclado aqui, mas volto ao mesmo assunto, não se trata de ser saudosista. Acho que a tecnologia serve para tirar coisas e operações trabalhosas da nossa rotina e ela própria pode ser um ingrediente de aproximação, não o contrário. Claro que um restaurante ou uma livraria necessitam de um sistema operacional, de estarem conectados à internet, de estarem ativos em suas redes sociais. Mas será que um cardápio impresso, com um garçom que conduza as escolhas, contando curiosidades do chef ou algum segredo de um prato, ou até mesmo o chef vir prosear após a refeição e saber da gente o que achamos, isso é ser antigo?

Numa livraria, quero sempre conhecer o cliente, saber as manias do leitor, saber o que ele leu e gostou ou o que não gostou. Nossos espaços são de convívio, são convites de encontros para pessoas em busca de conhecimento, de diversão com conteúdo. Não sou um algoritmo, sou um livreiro, deixa eu arrumar, Livreiro, assim, com maiúscula. E num restaurante não quero um tablet famigerado, quero atendimento, quero ouvir causos, quero comer bem e sair com vontade de voltar mais vezes, transformado pelo que ouvi, comi e aprendi.

Longa vida ao Livro físico e ao cardápio físico.

Até já, chegou a hora de preparar o almoço.

Obrigado pela preferência, volte sempre.

José Luiz Tahan

É livreiro, editor e idealizador do festival Tarrafa Literária. Autor da antologia de crônicas Um intrépido livreiro nos trópicos (Vento Leste).

Rascunho