Essa cisma, essa pulga atrás da orelha, essa má vontade, essa sensação de que não terá um bom desfecho, enfim, esse pacote de pessimismo crescente se dá quando vou atender o telefone fixo da livraria. Há algum tempo, o telefone também se presta ao whatsapp. Isso é bom em alguma medida, apesar de que 99% dos pedidos e mensagens são sobre livros que não costumamos ter em estoque — obras de autoajuda ou didáticos não são as nossas linhas de atuação. E o whatsapp, como está sugerido no instagram, acaba alcançando um número grande de pessoas que por vezes não nos conhecem tão bem. Então, é natural termos pedidos de livros mais gerais, menos dentro da nossa identidade. Mas esse nem de longe é o problema principal ou é o assunto, a passagem que vou trazer a vocês, curioso leitor, curiosa leitora.
A impessoalidade é tão grande e as ligações no bom e velho telefone fixo não são tão comuns como antigamente, mas volta e meia acontecem. Quis o acaso que eu estivesse perto do maravilhoso invento de Graham Bell quando ele tocou. Eu, sem muita emoção, atendi e uma voz neutra já me pergunta se quem atendia era o gerente ou o dono do estabelecimento. Eu me sentei e respondi que ele podia prosseguir e pensei: lá vem o pentelho do telemarketing. A voz masculina aceitou e prosseguiu, narrou que esteve na nossa livraria recentemente e que foi vítima de um constrangimento ao ser atendido por um de nossos funcionários, talvez até eu poderia ser essa pessoa. Aliás tem metade das chances de ser eu, estou com um dos dois colaboradores de férias há quase duas semanas. Fiquei atento à voz e pedi mais clareza da parte dele, pedi para que explicasse o que se passou, quem de nós o feriu, o constrangeu. Ele respondeu evasivo dizendo que iria explicar e optou por ligar para que não houvesse novo constrangimento. Então, ele iria utilizar esse caminho do fone fixo. Comecei a ficar sem paciência com o sensível e constrangido cliente sem rosto.
Nesse momento a monotonia foi afastada porque a voz deu uma mudada — de neutra, se tornou uma voz mais firme, mais enérgica e um tanto surpreendente. O homem deu um cavalo de pau e, de vítima, passou a agressor. Ele começou a descrever a região, mais precisamente o meu vizinho pouco glamouroso, a pastelaria do chinês, dizia, aí do seu lado tem uma pastelaria, não é? Pois é, eu sei bem onde você está e não tente fazer nenhuma besteira, a qualquer momento vamos invadir a sua loja e vamos roubar tudo e é melhor você não fazer nenhum movimento, nós estamos te vendo. Eu dei uma olhada lá pra fora, confesso que fiquei com receio, um batimento cardíaco de escola de samba, medo mesmo, olhei limitado pelo fio do maledeto telefone e vi umas crianças no parklet e nada mais. Seria uma ligação de um snyper, um atirador de elite escondido numa sacada de um prédio vizinho? Já fomos alvo de algumas agressões, principalmente durante a nossa apresentação semanal de música instrumental, em alguns desses dias vizinhos mal amados e abastados nos arremessaram feijões e um dia, vejam vocês, nos atiraram um ovo. Mas dessa vez os milagres dos alimentos caindo dos céus deram lugar ao atirador invisível.
Eu disse que ele estava indo por um caminho sem muito sucesso, que há pouco dinheiro em espécie, que recebemos mais em cartões de crédito e débito e até Pix. E, quando achei que não tinha muito mais argumentos, bati com o telefone na cara do homem sem cara.
Saí pela porta e dei uma olhada nos arredores, as crianças continuavam no parklet, os clientes entravam e saíam do mesmo jeito, um dia igual aos outros na Realejo.
Fui até os seguranças e relatei o caso, eles riram dizendo que é comum esse tipo de golpe, que logo depois ele iria aumentar ainda mais a intensidade até tentar que eu me livrasse dele pagando um valor via Pix. Esse golpe era rotineiro, segundo o pessoal.
Eu até aceito que seja rotineiro, mas para mim, a cisma que prevalece sobre o golpe é de ser via telefone fixo essa tentativa, tinha que ser via telefone fixo.
O dia seguiu, eu cismado, atendendo leitores pessoalmente e pensando sem parar como o telefone fixo é o alvo da minha cisma. Mesmo com tudo isso, foi um ótimo dia como livreiro, como tem sido há mais de três décadas.
Opa, minuto, deixa eu atender o telefone… Realejo Livros, bom dia.