Como funciona?

A entrada de um jovem na livraria desencadeia uma reflexão sobre a leitura e os desafios de se conquistar novos leitores
Ilustração: Eduardo Mussi
21/06/2025

Ninguém nasce sabendo, eu sei, você sabe, nós sabemos, mas há instituições, lugares de tanta tradição, lugares que permanecem do mesmo jeito, com a mesma proposta ao longo dos anos, das suas histórias, que ao se empilhar essa tradição histórica, ao se amontoar todas as histórias vividas, todas as experiências, todos os encontros, esses lugares antigos se enchem de significados. Esses lugares, as livrarias, têm dentro delas a vida, têm dentro delas o que elas são, de forma clara, rápida, direta, taí, me enganei novamente.

Foi dia desses, em meio aos atendimentos aos leitores, que um jovem com seus fones de ouvido, celular em punho e algumas tatuagens indagou para este livreiro de muitos carnavais: “Como funciona aqui?”. Em um segundo, respondi com outra pergunta: “Sabe como funciona uma livraria?”. “Sei.” “Pois! Aqui é uma livraria!”

Ele olhou em volta um pouco surpreso e rebateu com outra observação que pra mim fez pouco sentido. E essa observação não turva o entendimento sobre o que é o lugar. Ele rebateu: “É que eu vi uma placa sobre um café”. Começo a me divertir, mas só um pouco. Respondo, sim, temos um café, vendemos café e livros, somos uma livraria e cafeteria.

Eu realmente me pego pensando sobre por que muitas pessoas não entendem o que seja uma livraria, o que se propõe numa livraria, ou mesmo o significado de um lugar com as portas abertas, com vitrines cheias de livros, com estantes que tocam o teto, com uma escada apoiada para tocarmos este teto cheio de livros aos borbotões, esse espaço com vendedores e com outros visitantes examinando os ditos cujos. Fico intrigado com essas dúvidas sobre esses lugares seculares.

Esse pensamento, essa cisma sobre a dúvida em torno do que somos, vale ser examinado. Recentemente, o resultado da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo IPL (Instituto Pró-Livro) — que a cada quatro anos busca entender os hábitos culturais do brasileiro desde a infância até a idade adulta — mostrou que, pela primeira vez, o número de não leitores superou o de leitores. Dentre as razões para o resultado preocupante, penso que o uso sem limites das telas, dos celulares por crianças, somado a um enfraquecimento das políticas culturais praticadas nos anos de um Governo que virou de costas para a Cultura, acabando com compras de livros para distribuição em escolas e bibliotecas, tudo isso somado pode começar a nos dar algum entendimento sobre o atual momento que vivemos.

E dentro desse mesmo momento, é interessante notar que me parece que nunca existiram tantos clubes de leitura se reunindo, organizado por leitores. Nunca vi tantas pessoas frequentando eventos literários, sejam festivais como a Flip ou a nossa Tarrafa Literária ou mesmo feiras e bienais pelo Brasil afora, onde vemos multidões em busca de livros, autógrafos e selfies com seus autores e autoras do coração.

O Brasil é tudo isso, é a boa e a má notícia de mãos dadas, abraçadas, somos múltiplos, complexos e desiguais. Somos multiculturais, musicais e leitores. Somos periferia, favela e condomínio fechado. Somos passado, presente e futuro, somos promessa e somos frustrantes.

Não somos fáceis, mas ninguém achou que seríamos.

Voltando ao atendimento ao rapaz, na livraria, no momento seguinte em que expliquei o que somos, ele se aprumou ainda sem tirar os fones de ouvido e me perguntou se eu tinha um determinado livro de autoajuda, algo sobre evolução emocional. Lembro que o livro estava esgotado, um livro meio datado, antigo. Como costuma acontecer, esse tipo de cliente não está aberto para sugestões no campo próximo do que ele gostaria de ler. Sendo assim, ele se encaminha para a porta da livraria, balbuciando palavras ao léu, ao ar, ele falava com alguém pelo viva-voz do celular, via fones, ele começa a falar em espanhol, algo como “mira”, “si, estoy acá, si, una pastelaria…”

Sim, ao lado da livraria, temos um vizinho que é uma pastelaria, que ele reconheceu na hora o que eles vendem.

Pastelarias são universais.

José Luiz Tahan

É livreiro, editor e idealizador do festival Tarrafa Literária. Autor da antologia de crônicas Um intrépido livreiro nos trópicos (Vento Leste).

Rascunho