Dromedários na calçada

Os insolentes dromedários me ignoram e agem como se eu fosse transparente ou do tamanho de uma formiga
Ilustração: Marcelo Frazão
06/04/2025

Os dromedários passam por mim e fingem que não me conhecem ou que não existo. Eu deveria não me importar, mas não gosto de ser ignorada, sobretudo por dromedários. Parecem insolentes.

As ruas por onde ando são estreitas. Chegamos a nos esbarrar, mas eles seguem sem me cumprimentar como se fossem os donos da calçada, sacolejando suas imensidões na direção da praia. Sempre caminho na mesma hora, pontualmente às 6 da manhã. Na maioria das vezes o meu percurso é um deserto, com exceção dos dromedários, que também preferem meu deserto, criando um imenso desconforto para mim. Se ao menos me cumprimentassem. Andam como se fossem se desmantelar de repente, mas se mantêm firmes no seu trajeto diário.

São tantos os caminhos da cidade, por que logo na minha calçada aqueles seres gigantes e de nenhuma conversa decidem seguir? Agem como se eu fosse transparente ou do tamanho de uma formiga. Podem me esmigalhar se eu não sair da frente.

Faz muito calor.

Costumo descer a passagem subterrânea que dá para o outro lado da avenida, onde se alonga a calçada. A baía está ao fundo do lado esquerdo; vou na direção da praia que fica ao final do percurso desértico. O momento em que eles surgem é sempre no meu retorno, quando despontam na curva.

São três.

Andam em fila.

Avançam quietamente na minha direção. Estou cheia de sal e meu corpo carrega o pó da areia fina e suja, sinto coceira nas pernas, talvez alergia ao calor. Faço tentativas de ser vista, tropeço e quase caio na frente de um deles e o que acontece é o terror. Eles passam, simples assim, passam por mim e quase me pisam. A dor maior é a de não terem me cumprimentado.

Não há mais ninguém na rua. Não sei onde estão as pessoas. Eu poderia perguntar a elas se os bichos igualmente as desprezam. Fico sem saber se o problema é só comigo, um enigma que talvez não consiga solucionar a menos que surja alguém nesta solidão absurda. Percorro o despovoamento na intenção de me exercitar sem ninguém por perto, o que é triste, eu sei. No começo era até bom me espraiar no trajeto sem julgamento, mas confesso: depois que topei com os dromedários e percebi que não era vista por eles, comecei a me torcer por dentro de nervoso. Quero ser vista.

De repente, após o cruzamento silencioso com os dromedários, topo com um homem esparramado no chão. Ele tem o cheiro forte, o corpo imundo. Está embrulhado em um jornal e o corpo pisoteado, tem manchas pretas espalhadas, o sangue arroxeado parece estar ali há alguns dias. Passo por cima. É um desconhecido, finjo que ignoro aquele homem desabado com a língua para fora. Não me dei o trabalho de me agachar para sentir a respiração ou o hálito macabro. Sigo em frente, já que não existe a menor possibilidade de saber se ele viu os mesmos dromedários que eu. Talvez tenha sito pisoteado por eles, mas isso é apenas uma suposição. Tipos pisoteados como estes estão por toda a parte e não merecem meu assombro, todos os dias há os que caem.

No meio do caminho, o sol desaparece.

Apesar do intenso calor sufocante, o céu fica cinza-tristeza cada vez mais escuro à medida que avanço para a passagem subterrânea. Olho para trás e tento recuperar a visão dos dromedários, mas eles escapam. Não sei se eles vão até a praia e em que ponto retornam ou se existe um lugar onde se escondem. De qualquer forma, estou sempre por onde eles passam, cambaleando corpos imensos, peludos e fedorentos. Quem sabe poderão tombar sobre a rua e bater a cabeça na calçada, um sobre o outro. Os três morreriam juntos. Seria um alívio, pois eu não viveria mais o desconforto de não ser vista pelos dromedários diariamente. Seguiria meu caminho sem maiores sobressaltos.

No dia seguinte, rumo ao meu trajeto de sempre, um acontecimento estranho me afronta: quando chego à praia, há centenas de cadáveres de peixes espalhados pela areia. A praia está deserta apesar do calor extremo. Faz um bom tempo que não vejo pessoas na praia, aliás não vejo pessoas em nenhum lugar…

O cheiro de podre é volumoso.

O que terá acontecido? Nunca eu tinha presenciado o funeral de tantos peixes; é como se o mar despejasse a morte em pleno dia.

Não há nenhuma alma viva ao redor a quem perguntar, sequer um quiosque aberto onde um vendedor de coco pudesse me dizer quando houve aquele despejo dos peixes, ou sequer um velho pescador sentado de cabeça baixa no canto das pedras lamentando o ocorrido — não há. Ninguém está na praia ou em volta para que seja questionado sobre o massacre dos peixes. Estou diante de uma perplexidade e desconfio que algo esteja acontecendo no mundo.

Decido voltar porque não há sentido ficar ali, respirando aquele ar infesto. Sigo meu trajeto normalmente cruzando meu deserto diário. As ruas vazias, não há carros nem pedestres. Estou livre em minha caminhada, espraiando as pernas no meu evento saudável. Melhor esquecer o episódio da praia e deixar que os peixes se enterrem a si mesmos, afundando-se na areia até sumirem ou se despedaçarem.

Vou na linha reta na esperança de pelo menos alguma vez não topar com aqueles insuportáveis dromedários insolentes.

Eles aparecem.

À distância, imagino que eles irão me ver. Nem precisa ser um aceno.

Seguem o trajeto com a altivez de sempre, passam por mim e, se não me afasto, podem me espalhar pelo asfalto.

Vou em frente porque não há outra coisa a se fazer. O cheiro de podre dos peixes me cobre inteira como se crescessem em mim escamas. Acelero os passos para chegar logo em casa e tomar banho, voltar a ser uma pessoa. Curiosamente também não há ninguém em nenhum ponto do meu trajeto — por que só percebo isso agora?

Como moro sozinha não tinha me dado conta antes. Os vizinhos das casas ao lado devem ter se mudado. De todas as casas, diga-se de passagem. Todos devem ter se mudado. Há tempos não os vejo. Que ao menos os dromedários ainda estejam de pé e mesmo que não me vejam, eu os vejo e isso importa agora.

O calor aumenta de forma sufocante, sinto uma coceira insuportável. Fico listrada de vermelho pela força das minhas próprias unhadas. A cada dia o ar está mais pesado. O calor parece ter criado uma imensa cúpula no céu, não sei. Saudade da brisa que vinha do mar, o ventinho manso no corpo durante as caminhadas diárias. Há muito tempo não sopra um filete de vento. Talvez exista algo de estranho acontecendo na cidade, mas não consigo imaginar o que seja, pois, além da ausência de vizinhos, do indigente pisoteado no chão e do mar de peixes mortos na praia — igualmente vazia — está tudo na mais perfeita ordem. Sem falar do calor, mas este pode estar ligado a algum fenômeno climático, não abro os jornais nem me interesso pelas notícias. São cansativas.

Esqueço os possíveis problemas e adormeço de cara para a janela até que o novo dia me chame para minhas caminhadas que são a minha única função no mundo. Acordo com metade do rosto em brasa, parece que o calor aumentou ainda mais.

De volta ao meu trajeto de sempre, vejo que as árvores de antes se resumem a troncos secos. Quase afogada no próprio suor, sigo meu caminho, não posso deixar de repetir minha rotina. Vou na direção da praia. Será que as carcaças dos peixes mortos sumiram na areia? Não quero ver aquele espetáculo de horror sujando a vista do mar.

Atravesso a passagem subterrânea, e a visão da baía revela o inusitado: não há barcos. Onde estão todos os que ancoravam ali, naquele cenário de pintura, os veleiros ao fundo que pareciam tocar a ponta nas nuvens? Nada. Provavelmente naufragaram todos juntos. Deve ser o calor que enlouqueceu os ânimos dos marinheiros, só pode ser.

A sola do tênis derrete no asfalto.

O calor parece uma pessoa de 300 quilos me empurrando para trás enquanto eu ando. Insisto mesmo assim, já tenho essa rotina há séculos, não é por causa desta série de conjunturas que vou mudar de itinerário. Avanço mais lentamente do que nunca. Percebo uma fumaça escura vindo do restaurante de carnes localizado logo após o clube. Está fechado a essa hora, não entendo por que há chaminés ou fornos ligados tão cedo. Quando ando mais à frente e olho para trás, vejo que não é uma simples fumaça, mas por dentro há fogo. Vou em frente para não me derreter ainda mais.

Quantas intercorrências em uma rotina que era para ser normal.

Vou adiante, chego à praia. Ninguém recolheu os peixes. Pelo contrário. A maré subiu e há uma nova leva de corpos, as escamas apodrecem, o cheiro toma conta de toda a orla. Esses funcionários da praia devem ter tirado férias em conjunto para aproveitarem o verão em algum lugar mais fresco. Só pode.

Dou a volta e sigo o percurso. Hora de encontrar os dromedários. Não é possível que, para piorar a ordem das coisas, eles não apareçam.

Ufa! Vejo que se aproximam de longe, mas ao surgirem na minha frente andam incontinentes da mesma forma. Não existo diante da linha reta e invisível que seus olhos desenham no horizonte por onde passam. A altura deles não permite que me vejam, ali, minúscula, distante do seu raio de visão. Deve ser por isso que me esnobam, mas é apenas uma suposição. Posso ter desaparecido do mundo e não percebido.

Se ao menos eles me vissem.

Depois de perceber que eles não conseguem me ver por dois motivos razoáveis — a altura da linha dos olhos deles em relação ao meu tamanho ou a minha inexistência —, sigo de volta para casa na rotina de sempre.

Ao chegar aonde deveria ser minha casa, não a encontro. Vejo um desmoronamento de terra no lugar onde deveria estar meu prédio. Não há pessoas, apenas entulho. Talvez eu tenha errado o endereço, minha cabeça está confusa demais nesse calor, fui levada para onde não moro. Dou voltas na quadra e chego à conclusão de que estou perdida — não encontro mais meu prédio.

Tudo está muito estranho. A culpa só pode ser deles, os dromedários insolentes.

Como não sei mais onde moro, o jeito é retornar para a praia, o único percurso que consegui guardar; a cabeça está fraca, posso desabar a qualquer momento.

O que me ocorre em um lampejo breve de lucidez é que os dromedários podem não existir. De repente viram seres criados por uma alucinação.

Tem dias que parece que o mundo acabou.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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