“O choro é livre”, ouvi alguém dizer. Talvez um professor de matemática em dia de prova final. Não consigo saber agora. Mas lembro da frase, de que me soou agressiva, de me assustar um pouco, como se tivesse sido direcionada a mim — um tapa no meio da rua sem explicação.
Não sei bem por quê, mas com o passar dos anos me tornei uma pessoa que chora pouco. E como já fui chorona isso me causa um certo desconforto. Um estranhamento diante de alguém que sente muito e quase não chora. Que muitas vezes, inclusive, tem vontade, a sensação de que vai chorar e, ainda assim, não vai além dos olhos úmidos.
Assombrada pelas surpresas do climatério, esta semana me peguei pensando se assim como pele e cabelos, ressecados do dia pra noite, meus canais lacrimais poderiam estar sendo afetados pelo mesmo fenômeno, mas concluí que não. Meu choro secou há décadas. Em todo caso, aproveitando a consulta anual à oftalmologista, soltei a pergunta. Dra. Claudia me olhou por cima dos óculos com aquele olhar que volta e meia recebo. Um olhar que se pergunta se aquela moça a quem o olhar é lançado é sã. Sem me responder de imediato me prescreveu um colírio três vezes ao dia. “Em princípio não há relação entre uma coisa e outra, mas é importante hidratar os olhos”, se limitou a dizer.
Tenho lembranças sensoriais de inúmeros choros, infantis e adolescentes. A contração no centro do peito seguida pelo nó, um pouco abaixo da garganta; o queixo tremendo de leve, sinalizando o que virá na sequência; os lábios se curvando para baixo, os olhos imediatamente inundados, transbordando. Lágrimas espessas descendo pelo meu rosto numa velocidade assombrosa, desvairadas, incontidas, escorrendo sem trégua, molhando a roupa, sem lenço de papel que desse conta. O nariz congestionado logo depois, os soluços impedindo a fala, os olhos injetados, inchados, deformados. E o meu pranto ali, descontrolado, me deixando sem fala.
Quantas vezes eu não chorei assim. Nossa, infinitas vezes. “Você tava chorando?”, me perguntavam. O choro tinha ido embora, mas ficava estampado no rosto.
Se a minha memória não está me traindo — e ela tem me traído com frequência nos últimos tempos —, comecei a notar que havia algo estranho no início dos anos 2000. Ao terminar um longo namoro, disse ao candidato a ex que daquele jeito não queria mais. Ouvi de volta que era daquele jeito que ele queria e respondi que então não poderia ser. Ele ficou me olhando em silêncio, claramente esperando meu choro. E eu fiquei olhando para ele, no fundo daqueles olhos escuros, sem nenhuma vontade de chorar. Tive a impressão de que ficou decepcionado, um tanto sem graça. Eu então levantei e abri a porta em silêncio para acabar de uma vez por todas com aquele constrangimento. Ele saiu cabisbaixo. Fechei a porta e não derramei uma lágrima sequer.
***
De vez em quando observo meu rosto no espelho do banheiro. Um espelho enorme que cobre toda a parede abaixo da janela, de ponta a ponta. Bem cedo, o sol entra como um holofote. Então, às vezes, tomo coragem. Me olho de frente. Sem maquiagem, sem filtro. Ao acordar. Me aproximo do espelho e me encaro. Examino meu rosto. Da testa, no extremo norte, ao queixo e ao pescoço, no extremo sul. Percorro, através dele, todos os meus territórios, fronteiras, acidentes geográficos, ilhas, encontros de rios. Aclives, declives, encostas. Passeio pela orla banhada por um mar nem sempre manso. Pintas, pelos, poros. E ao examinar meu rosto, enxergo camadas geológicas marcadas por risos, gargalhadas de doer a barriga, todos os meus choros. Aqueles que explodiam numa erupção quase silenciosa e aos poucos ressecavam as minhas pálpebras, deformadas pela tristeza. Me observo de vários ângulos iluminada pelo sol da manhã, redescobrindo e entendendo esse mapa desenhado no meu rosto, moldado por tudo que encontrei pelo caminho.