A eterna tragédia

De “Otelo” a “Disclaimer”, a tragédia das vítimas consideradas “testemunhas não confiáveis”
Ilustração: Juliana Montenegro
04/04/2025

Ao lado de Rei Lear, Hamlet e Macbeth, Otelo é uma das principais tragédias de Shakespeare. Escrita entre 1603 e 1604, pode-se dizer que é a tragédia do ciúme, o monstro debochado de olho verde.

Lançada pela Apple TV+ em 2024, Disclaimer é uma série dirigida por Alfonso Cuarón, estrelada por Cate Blanchett e Kevin Kline, baseada no livro homônimo, de Renée Knight, publicado em 2015.

Assisti à Disclaimer no segundo semestre do ano passado ao mesmo tempo que relia Otelo e me dei conta de algo que a primeira leitura, no fim da adolescência, não me revelara. Chamou minha atenção o fato de Otelo tomar como verdade incontestável o que lhe é contado por Iago. Otelo tem certeza de que Desdêmona, a mulher por quem se apaixonou, o traiu. Para Otelo, a palavra de Iago vale mais do que a de Desdêmona. E foi esse o ponto que me chamou a atenção, ele sequer ouve a própria mulher, não lhe dá a chance de se defender.

A tragédia é sobre ciúme, mas também sobre feminicídio: Otelo mata Desdêmona — sufocando-a sem ouvi-la. Afinal, foi traído por uma “puta”, como ele a chama antes de asfixiá-la, e a mulher infiel merece a morte. Mas, nós, leitores, sabemos que não houve traição.

Em Disclaimer acontece algo semelhante. Robert Ravenscroft (Sacha Baron Cohen), marido de Catherine Ravenscroft (Cate Blanchett), acredita que vinte anos antes, na juventude, passando férias na praia com o filho pequeno, Catherine teria seduzido um rapaz chamado Jonathan (Louis Partridge), com quem teria passado uma noite tórrida. Catherine teria atraído Jonathan, um moço indefeso e gentil, para o seu quarto de hotel e passado uma noite intensa com ele. Um rapaz de boa índole, tão generoso que no dia seguinte se joga no mar e salva o filho de Catherine. Ao salvar o menino, morre afogado sem que Catherine faça nada para impedir, já que desejaria se livrar do amante inconveniente.

Ao tomar conhecimento dessa história, Robert rejeita Catherine e a expulsa de casa. Como Otelo, não questiona, não cogita a possibilidade de que possa não corresponder aos fatos a versão em que Catherine seduz, posa para fotos eróticas e nega socorro ao rapaz que salva a vida do seu filho. Como acontece com Desdêmona, não é dada a Catherine — e não só por seu marido — a chance de contar o que realmente aconteceu: Jonathan invadiu o quarto de Catherine e, sob a mira de uma faca, o filho dormindo no quarto ao lado, ela foi estuprada durante horas e obrigada a posar para as fotos eróticas.

Robert cai em si e se arrepende. Pede desculpas a Catherine, pergunta se ela pode perdoá-lo. Serena, ela responde que gostaria, mas não consegue. “I know I should forgive you but I can’t” [“Eu sei que deveria te perdoar, mas não consigo”], diz ela, ao constatar que o marido reage melhor ao estupro sofrido do que à suposta traição. Ela quer o divórcio.

Quatro séculos separam Otelo de Disclaimer. Cerca de 420 anos. Obras de ficção. Ou nem tanto. Mulheres seguem não sendo ouvidas. No momento em que eu procurava um bom fecho para esse texto, li a notícia de que Daniel Alves, ex-jogador de futebol, foi absolvido por um tribunal na Catalunha. A vítima do estupro praticado por ele no banheiro de uma discoteca em Barcelona foi considerada “uma testemunha não confiável”.

Clarisse Escorel

É escritora, advogada e especialista em Propriedade Intelectual e Direitos Autorais. Estreou na literatura em 2023 com o livro de crônicas Depois da chuva (Ouro sobre Azul). Vive no Rio de Janeiro (RJ).

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