O cruzo das rainhas sob o manto azul e branco

Quando o romance “Um defeito de cor” pisou macio e fundo no solo sagrado no carnaval do Rio de Janeiro
Desfile da Portela em homenagem ao romance “Um defeito de cor”
10/05/2024

Ouvimos os gemidos dos ossos soterrados, quando Um defeito de cor, o tapete mágico, sobrevoou a Kalunga Grande. Lá no alto, os que dormiam acordaram e viajaram para dentro. À medida que cantávamos o canto libertador, tornamo-nos infinitos em expansão, desde dentro.

Naquele carnaval, um livro pisou macio e fundo no solo sagrado azul e branco, ganhou o chão da escola, o responsável pela pulsação na avenida e pela consagração de uma canção, genuinamente preta, que nasceu quilombo e cresceu favela.

Enquanto a ala 13 aquecia o corpo e a voz para saravar Kehinde, uma rainha, diluída entre as súditas, descobriu outra rainha, transformando-se em personagem do cortejo no alto de um carro temático, e passou a olhá-la de maneira insistente. Tratava-se de uma realeza silenciosa saudando a outra, guiada por um protocolo dominado apenas por elas.

Duas soberanas anônimas, uma no chão, outra à frente de uma grande alegoria, cuja parte mais elevada abrigava artistas presentes na mídia, que eram reconhecidos e aplaudidos no asfalto, enquanto caminhavam entre as pessoas comuns em direção a seus lugares.

Postada no solo, a primeira rainha reconheceu a rainha suspensa que se paramentava como uma benzedeira que vivia a condição de escravizada. Esta já havia declarado que, depois do episódio de racismo sofrido numa loja de departamentos em Brasília, no ano anterior, julgou importante desfilar como destaque no fulgor de seus 85 anos, pois a abordagem racista insidiosa, feita por uma segurança, levou-a a muitas reflexões sobre si e sobre seu lugar no mundo. Ela sairia, então, benzendo sua Portela na avenida, a partir de seu lugar de autoridade, constituído por décadas de trabalho e envolvimento na comunidade.

A Rainha do Reinado mineiro, por sua vez, trajava uma fantasia de manuseio complexo e pouco adequada a seu corpo franzino. Era fácil prever que aquilo lhe causaria problemas ao longo do desfile, principalmente na área da dispersão. Mas uma rainha não se queixa (foi o entendimento dela) — supera o sacrifício físico pelo amor.

Antes que a chamassem para ocupar outro espaço na ala, ao lado de amigas, a Rainha Leda Martins me disse: É Vilma? É Vilma, ali? Você sabe quem é Vilma, a lendária porta-bandeira da Portela? Sim, eu sabia quem era Vilma da Portela, mas, absorta em seguir as instruções para não prejudicar a evolução da escola, como a maioria do pessoal, eu não a havia reconhecido no caminhão. Cantarolei para a Rainha Leda (e deveria ter puxado um canto forte em reverência à Rainha Vilma) os versos imortalizados por Jair Rodrigues: “Como é que eu posso por ela trocar/ a emoção de ver Vilma dançar/ com o seu estandarte na mão?”.

“Minha mãe foi muito amiga dela”, confidenciou-me a Rainha Leda, que, como Milton Nascimento, é uma carioca que se tornou mineira; o contrário de Lélia Gonzales, que, mineira, converteu-se ao Rio de Janeiro.

A Rainha Leda mantinha o olhar resoluto em direção à Rainha Vilma, naquele diálogo entre majestades, naquele conhecimento antigo de reencontrar uma amiga da mãe, antiga passista da Portela.

Agraciada pelo momento que só eu testemunhei, voltei meus olhos para o céu sem lua em agradecimento e a águia-guardiã bateu as asas, espalhando um vento bom sobre minha cabeça, abriu o bico, fechou os olhos e envolveu meu coração com o manto azul e branco.

Só me restou pedir perdão à Mangueira, como já havia feito em 1985, quando torci pela irresistível Mocidade Independente de Padre Miguel. No carnaval de 2024, louvando Um defeito de cor e sua autora, Ana Maria Gonçalves, não deu para resistir… Fui Portela!

Cidinha da Silva

É escritora e doutora em Difusão do Conhecimento. Publicou 21 livros, dentre eles, os premiados Um Exu em Nova York e O mar de Manu.

Rascunho