Muito antes de inventar o jagunço Riobaldo e os sertões metafísicos de Grande sertão: veredas, João Guimarães Rosa era um jovem médico mineiro que escrevia contos de horror.
Um Rosa quase irreconhecível, mas já inquieto e talentoso. Essa face inicial do autor pode ser encontrada em Antes das primeiras estórias, coletânea póstuma lançada em 2011 com quatro textos inéditos escritos entre 1929 e 1930.
Os contos — O mistério de Highmore Hall, Chronos kai Anagke (Tempo e destino), Caçadores de camurças e Makiné — foram publicados originalmente em revistas como O Cruzeiro e O Jornal, com direito a premiação literária. Lidos hoje, mostram um Rosa em formação, ainda distante de sua linguagem consagrada, mas já com domínio narrativo e um olhar voltado para o estranho, o simbólico, o sombrio.
O conto O mistério de Highmore Hall, por exemplo, é um exercício de horror gótico à maneira de Edgar Allan Poe. Um médico visita uma mansão escocesa em ruínas e descobre no porão um segredo inominável. A ambientação sombria e o final trágico criam uma atmosfera que antecipa o Rosa que um dia colocaria o diabo no meio do redemoinho.
Em Chronos kai Anagke, Rosa troca o horror por uma alegoria fantástica: um jovem enxadrista é misteriosamente levado a um castelo onde assiste a uma partida entre o Tempo e o Destino. A narrativa é construída na forma de um labirinto, com salas geométricas e iluminação esverdeada, e deixa ao leitor a dúvida: o que foi sonho, o que foi real?
Já Caçadores de camurças e Makiné tratam do horror como parte da natureza humana. No primeiro, dois amigos se enfrentam numa caçada trágica nos Alpes, em nome do amor e da rivalidade. No segundo, um mago estrangeiro sacrifica crianças indígenas para encontrar diamantes escondidos, evocando o mito de Baal-Moloch em pleno interior de Minas Gerais.
Mesmo quando não abraça o sobrenatural de forma explícita, Rosa trabalha com o medo essencial: o da morte, da culpa, da clausura, daquilo que está fora de lugar no mundo. É um horror existencial, ainda tímido, mas já eficaz.
Críticos mais ortodoxos talvez considerem esses contos “menores” diante da obra-prima posterior. De fato, há traços de imaturidade estilística e uma tendência à teatralidade que Rosa abandonaria com o tempo. Mas ignorar esses textos é perder a chance de entender o escritor em formação, seu diálogo precoce com o fantástico e o modo como já intuía o poder da linguagem para torcer o real.
Como disse Mia Couto no prefácio da edição, Rosa ainda não encontrara seu idioma, mas o ouvia ao longe, um autor que escuta passos no escuro.
Antes das primeiras estórias não é um livro para encontrar o Rosa pronto. É uma obra para vê-lo desabrochar entre sombras, feito alguém que caminha no limiar entre o terror e a poesia. E, nesse limiar, poucos escreveram com tanta precisão e estranheza.