Deus criou o mundo em sete dias, e no oitavo, num bar em Ipanema, gerou Vinicius de Moraes. É o que parece, ao menos, lendo as hagiografias disfarçadas de biografias sobre o Poetinha.
Vinicius é a prova viva de que a genialidade serve, para muitos, como um eficaz corretivo moral. Como aquele bilhete do professor: “fulano é bagunceiro, mas é muito inteligente”, que a mãe lia com o orgulho de quem tinha criado um Einstein.
Eis o dilema que Luca Argel trata em seu Meigo energúmeno: como um poeta que celebrava tanto o feminino conseguia, com a leveza de uma pluma e o peso de uma bigorna, perpetuar estereótipos de submissão, infantilização e silenciamento das mulheres? A resposta está no próprio título da obra: Vinicius era meigo, mas energúmeno — no sentido de um descontrolado por excesso de paixão.
O Poetinha exaltava a mulher-flor, a mulher-rosa, a mulher-desejo. E que homem não gostaria de ser amado por flores? O problema começa quando se nota que, para ele, toda flor feminina parecia vir com um único tipo de adubo: a aprovação masculina. Se a flor ousasse murchar por vontade própria — e não por abandono do jardineiro —, então, dizia ele em versos, ela teria “alguma coisa de menos no coração”. Psicologia de jardim vitoriano.
Mas a obra, de forma alguma, ajuíza a vida do bardo. Vinicius era, afinal, um homem do seu tempo. Um tempo em que chamar uma mulher de “uma escrava morena de mim” era considerado poético, não um aceno à senzala. Declaração que só não causou mais escândalo porque o leitor médio, embriagado pela beleza da frase, tropeça na métrica antes de perceber a semântica.
E quem pode esquecer Garota de Ipanema? Aquela “coisa mais linda” que passava e nem desconfiava de que estava sendo medida, pesada e desejada pelo titã da MPB em um bar, como quem escolhe um vinho pela garrafa. O termo “coisa”, no caso, não era figura de linguagem: era metonímia de objeto.
Há algo, todavia, de muito honesto em Vinicius. Ele nunca tentou esconder suas contradições. Talvez por saber que a poesia as tornava aceitáveis. Assumiu-se um meigo energúmeno, o que é quase uma confissão de que era um homem gentil, sim, mas cheio dos velhos desvios patriarcais. A diferença é que, ao contrário dos outros, rimava esses desvios com flores, amor e perdão.
Ele era como aquele tio nas festas de família: faz piada velha, fala bobagens datadas, mas todo mundo finge que está tudo bem porque, afinal, ele é tão charmoso. O que Luca Argel nos convida a fazer, com sua análise, é tirar o dedo preso na porta e perceber que o incômodo não é gratuito. O romantismo de Vinicius é belíssimo, mas, quando olhado com lupa, revela-se também um espelho de um Brasil que ainda precisa aprender que amar não é possuir, exaltar não é objetificar e mulher não é flor de enfeite. É flor de poder.