Gourmetizo, logo pago caro

Comida boa mesmo é aquela que não precisa de legenda em três idiomas, mata a fome e não faz ninguém morrer para pagar a conta
Ilustração: José Lucas Queiroz
23/04/2025

Há uma tragédia silenciosa se desenrolando nas mesas dos bares e restaurantes brasileiros, e ela não envolve a pesada inflação sobre os alimentos. Trata-se de algo muito mais insidioso: a gourmetização. Uma praga contemporânea que substituiu o feijão com arroz por uma redução de grãos ao aroma de fumaça amazônica servida em pires de cerâmica japonesa por um garçom com cara de quem já foi DJ em Berlim.

O fenômeno é simples. Basta pegar um item popular, barato e saboroso. Uma coxinha, por exemplo, e envolvê-la em camadas de pretensão: frango orgânico criado a som ambiente de Bach, massa de batata-doce roxa importada da Nova Zelândia, e um toque de espuma de requeijão defumado que mais parece catarro.

No epicentro de tal farsa gastronômica está ele: o chef. Não o cozinheiro, não o mestre-cuca da esquina que frita pastel. O chef. Figura mística, trajando jaleco branco com o nome bordado em fonte cursiva e tatuagens enigmáticas visíveis nas mangas arregaçadas. O prato, claro, é mero figurante. Uma moldura para o ego do artista. Comer é só um detalhe.

Como bom cidadão curioso e masoquista, decidi experimentar a novidade. Fui a um restaurante que prometia proporcionar uma jornada sensorial pelo Brasil profundo com toques escandinavos e referências da escola japonesa contemporânea. Eu devia ter desconfiado já na recepção, onde me ofereceram um aperitivo aromático que era, nada mais, nada menos, do que uma colher de ar com um galho de alecrim espetado.

O cardápio, impresso em papel reciclado, oferecia pratos com nomes como Fragmentos do sertão e Sopro atlântico sobre raízes. Sem entender direito o que aquilo significava, escolhi o tal do Haute cuscuz.

Veio à mesa um prato imenso, branco, redondo, limpo — quase vazio. No centro, repousava uma gota. Sim, uma única e solitária gota de cuscuz. Do lado, uma pincelada de algo que o chef jurou ser um molho reduzido de mel de abelha nômade, com acidez de limão cravado em lava inativa.

O garçom — perdão, o curador de experiências gustativas — me explicou: “o prato propõe um diálogo entre a memória afetiva e o minimalismo gastronômico”.

Minha barriga respondeu com um sonoro diálogo intestinal. Eram 13 horas, eu não comia desde as 8 e tinha acabado de pagar R$ 172,00 numa experiência que me deixou desnutrido.

Sai de lá, entrei numa padaria, e comi um x-tudo. Fome não se resolve com espuma.

Naquele dia descobri que o brasileiro médio, refém do complexo de vira-lata, aceita pagar mais por muito menos. Topa esperar 45 minutos por uma porção de batatas rústicas metidas a educadas. Diz que sim para um cardápio escrito em francês com palavras que nem os parisienses reconheceriam.

Porque tudo virou performance. O ato de comer foi sequestrado pela necessidade de parecer interessante no Instagram. A comida, que era antes afeto, simplicidade e fartura, virou decoração de feed.

Por isso, é preciso, urgentemente, reabilitar a farofa. Restaurar o prestígio da porção de calabresa acebolada que chega estalando no óleo, acompanhada de pão murcho e coca-cola de garrafa de vidro.

É que comida boa mesmo é aquela que não precisa de legenda em três idiomas, nem de luz baixa e trilha sonora experimental. É a que mata a fome e não faz ninguém morrer para pagar a conta.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

Rascunho