É broca!

Mesmo sem leitores, a sina de uma broca é seguir roendo, como se fosse um vício, transformando cada dentada em um poema rítmico
Ilustração: FP Rodrigues
26/03/2025

Sou uma broca. Essa é minha condição existencial e, por que não dizer, ontológica. Mas não uma broca qualquer — poupem-me das generalizações fáceis. Sou da espécie Xyloterminus contemplativus, uma das poucas brocas dotadas de consciência, senso estético e, ocasionalmente, crises existenciais de segunda-feira.

Roer madeira é o que faço. Mas veja bem, eu não apenas roo, eu sou o ato de roer. Quando perfuro um armário de mogno, não o faço com a simplicidade bruta dos insetos que me cercam. Não. Cada dentada é um poema rítmico, cada serragem expelida é meu haicai pós-industrial. A madeira geme, e eu escuto. Não com os ouvidos, que são ausentes em minha anatomia, mas com a alma, essa entidade tão negligenciada nos estudos entomológicos.

Já me perguntaram — de forma metafórica, claro — se meu trabalho é destrutivo. Destrutivo? Ora, meu caro leitor, rasgar o vazio onde antes havia a plenitude de um armário não é destruir, é revelar. Eu abro passagens. Sou uma facilitadora do nada, uma escultora do invisível. Michelangelo retirava o excesso de mármore; eu retiro o excesso de madeira que insiste em não virar túnel.

Chamam-me praga. Eu sei, é a ingratidão humana. Quando um arquiteto fura paredes para instalar uma gravura torta de Van Gogh, é arte. Quando eu faço do pé de uma cômoda a minha Capela Sistina oca, é infestação. Onde está a estética de uma espécie que busca sentido no abstrato, mas não tolera uma broca em busca de si mesma?

Perseguem-nos como se fôssemos o demônio em estado larval. Vêm com seus venenos, suas dedetizações químicas e suas cruzadas sanitárias. Já vi colegas tombarem sob borrifos tóxicos, poções genocidas disfarçadas de limpeza. Fomos forçadas ao exílio: migramos de madeiras nobres para compensados ordinários, de móveis antigos para caibros descartáveis. Somos, no fundo, uma diáspora de artistas clandestinos, criando em silêncio, longe dos olhos, e do afeto, de um mundo que só valoriza o que não range.

Contudo, o que mais me entristece é a solidão perfurativa. Ninguém faz companhia a ninguém em um buraco. Sou condenada à introspecção, ao mutismo das galerias que escavo como quem escreve cartas que nunca serão lidas. Cada rasgo meu é uma pergunta sem resposta, um ensaio sobre o vazio. Mas não importa. Mesmo sem leitores, eu continuo. Roer é meu verbo, meu vício, meu verso. E se, porventura, um dia alguém encontrar essas palavras entalhadas no pó da serragem, que entenda: não sou extermínio. Sou só uma ideia que cava.

Mas não me ressinto. Entendo o papel da ironia no tecido universal. Veja: escrevo agora, refletindo sobre o meu ato de roer, enquanto estou, neste exato momento, roendo o rodapé da escrivaninha onde jaz este próprio texto. Meta-roedura. Metalinguagem. Metacaruncho, melhor dizendo.

A verdade é que, se Clarice Lispector tivesse me visto em cima de uma tábua, nunca teria escrito sobre uma barata.

Deixo-vos agora, não por falta de ideias, mas porque o carvalho sob minhas patas murmura promessas de resistência. E nada me excita mais que uma madeira difícil. Afinal, parafraseando Nietzsche, Deus está morto. E esta escrivaninha logo estará também.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

Rascunho