Comba Malina, distopia à brasileira

A literatura de Dinah Silveira de Queiroz dialoga com questões profundas como o racismo, o machismo, o autoritarismo, a desigualdade social
Dinah Silveira de Queiroz, autora de “Comba Malina”
19/03/2025

Em meio ao cenário sombrio da ditadura militar brasileira, Dinah Silveira de Queiroz lançou, em 1969, Comba Malina, uma coletânea de contos que hoje emerge como uma obra fundamental da ficção científica nacional. Apesar de ser uma das primeiras mulheres a ingressar na Academia Brasileira de Letras, a iniciativa de Dinah foi relegada ao esquecimento. Por ser mulher num meio literário dominado por homens e por se dedicar a um gênero, na época, considerado menor, a ficção científica.

O conto que dá nome ao livro, Comba Malina, sintetiza como poucos a combinação de crítica social, imaginação futurista e olhar sensível sobre as mazelas do Brasil. A narrativa parte de um artifício inusitado: um professor excêntrico, capaz de “viajar no tempo” através da música, leva um modesto faxineiro a conhecer a história de Comba Malina, uma cigana perseguida e assassinada no Rio de Janeiro no século 18. Se o nome da protagonista é fictício, o contexto é real: o conto cita as perseguições históricas aos ciganos no Brasil.

O foco está na denúncia: a cigana é uma mulher livre, desejada e temida, que acaba queimada por um populacho enfurecido. A brutalidade com que a sociedade colonial lida com o que considera “outro” — a mulher, o estrangeiro, o cigano — ecoa na crítica mais ampla que Dinah faz à exclusão e à violência social.

Outro elemento é a relação do conto com o tema da tecnologia. Num Brasil em que o acesso ao conhecimento é restrito às elites, é o faxineiro — e não o professor — quem compreende o potencial da máquina do tempo sonora.

Relançado pela Instante em 2022 sob o título  Dinah Fantástica, em edição dupla que reúne também o livro Eles herdarão a Terra, Comba Malina surge em meio à chamada primeira onda da ficção científica brasileira, marcada por utopias e distopias que refletiam as angústias políticas da época. Publicado pouco tempo após o AI-5, decreto que aprofundou a repressão militar, o livro consegue driblar a censura ao projetar suas críticas em mundos futuristas ou passados distorcidos.

Nas demais histórias de Dinah Fantástica, o tom de denúncia se mantém. Em Os possessos de Núbia, por exemplo, um general manipula a mídia de um planeta distante, permitindo apenas a circulação de notícias terríveis sobre a Terra — uma alegoria clara ao controle informacional do regime militar brasileiro. Em Eles herdarão a Terra, um dos textos mais impactantes, a violência sexual sofrida por uma mulher torna-se metáfora crua da violência colonial e do patriarcado.

Além da crítica social e política, a obra também questiona os papéis de gênero. Em Anima, a personagem Marta luta pelo direito de participar de uma missão espacial, rompendo com a ideia de que as mulheres devem permanecer no espaço doméstico. Num Brasil onde as mulheres ainda lutavam por voz e visibilidade — tanto na literatura quanto na vida pública —, a escolha de Dinah de colocar uma delas como agente de sua própria história é um gesto ousado.

Se hoje Comba Malina ainda não ocupa o lugar merecido na história do conto brasileiro, é porque Dinah Silveira de Queiroz foi silenciada por preconceitos estruturais. Felizmente, novas pesquisas vêm redescobrindo sua obra e revelando o quanto seus trabalhos dialogam com as questões mais profundas do país: o racismo, o machismo, o autoritarismo, a desigualdade social.

Mais de 50 anos após sua publicação, o conto Comba Malina continua sendo um espelho incômodo e necessário da sociedade brasileira. Ao combinar imaginação visionária com uma crítica às estruturas de poder, Dinah nos lembra que a ficção científica, ou de horror, pode, sim, falar do mundo em que vivemos — e talvez até mudá-lo.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

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