Ando meio nostálgica, e nem acho a melhor coisa do mundo. Mas é que têm acontecido uns episódios que me arrancam de onde estou e me levam para outro lugar. Um espaço de memória e vaga impressão, uma provocação que me desperta para sensações que só tive mesmo décadas atrás, e hoje talvez se mesclem à experiência remota, deslembrada, recôndita.
Ainda tenho telefone fixo. Quase ninguém sabe o número, mas ele está lá, para casos urgentes e ligações de meia dúzia de pessoas muito escolhidas. Como meu celular vive no silencioso (é no silencioso), às vezes alguém se vale do telefone fixo para me encontrar na toca. Quando, numa conversa qualquer, menciono a existência de um telefone fixo, não raro as pessoas se espantam. Não têm, não sabem mais como é, não veem serventia alguma, dispensaram, nem se lembram. Perguntam se tem fio, se tem gancho, se disca. Aqui, espalhado pela casa, o telefone ainda faz sentido, inclusive como algo para ser usado de um jeito muito importante e específico. Ninguém chama no fixo à toa.
Tive vários números. Trocava quando precisava fazer alguma mudança ou, certa vez, porque o número era fácil demais e atraía muitos enganos. Esses enganos, no entanto, podiam me divertir. Contei, durante muitos anos, o caso do Balta. O provável dono anterior do meu número era o Baltasar, possivelmente um bonitão mulherengo ou um feioso cafa, cheio de borogodó, que abalou corações pela cidade inteira. Só mulheres ligavam para o Balta, perguntavam por ele, estranhavam uma voz feminina que atendia irritadiça, clamavam pelo Balta, mas eu só tinha uma resposta: “não é daqui”. Frases como “Alô, quem é?”, “Vou chamar”, “É da casa de Fulano?”, “Não é daqui” se extinguiram das conversas telefônicas. Foram inauguradas novas formas de falar, de atender, de desligar. As tecnologias e os textos, como não?
Um dia, me cansei de atender as chacretes do Balta. Num rompante de irritação pela interrupção, achei de responder: “Balta? Meu marido não está”. E deu para sentir o peso da decepção do lado de lá. A respiração suspensa da moça, o choro amarrado, a voz trêmula, a sem-graceza incontida. O Balta era casado. Meu Deus. Enganada! A voz feminina não se deu ao trabalho de explicar, perguntar ou se despedir. Desligou. E isso aconteceu por mais duas ou três vezes. A notícia talvez tenha corrido e as ligações para o Balta escassearam até cessar. Foi a paz. Vai, Balta, correr mundo com outros números.
Essa lembrança foi recentemente desencavada por outro engano telefônico, desta vez no meu celular. À mesa do almoço com minhas amigas, numa tarde agradável de chuva intermitente, eis que meu telefone toca e eu dei de atender. Geralmente nem olho, mas resolvi ver o que era, número sem registro, talvez fosse algo relevante. Claro que não era. Do lado de lá da linha, uma grave e animada voz masculina disse: “Ô, Raimundão! Como tá?”. Titubeei. Vai ser uma decepção, mas adelante: “Este não é o telefone do Raimundão…”, com minha voz feminina pouco sutil. Silêncio. As pessoas que se enganam ao telefone ficam pasmas, tontas, um pouco constrangidas, levemente envergonhadas, levam alguns segundos para acreditar no engano, repensam, captam a voz de quem atendeu, como se conferissem a verdade. O homem do lado de lá também titubeou. Murmurou alguma coisa ininteligível. Certa descrença. Será o Raimundão um zoador? Ou talvez pudesse ser eu a mulher do Raimundão dando incerta no telefone dele? Depois de alguns segundos, meu interlocutor aceitou os fatos e desligou. Não pediu desculpas pelo engano, pela inconveniência, pela interrupção do meu almoço, nem por me chamar de Raimundão. Desliguei também e me diverti com o episódio, que logo virou piada: “Gente, acabam de me chamar de Raimundão. O que vocês acham?”. E caímos na risada. É…, até que combina.