Um dia, provavelmente em julho de dois mil e pouco, um namorado que, naquele instante, virava ex-, me disse que eu jamais encontraria alguém melhor do que ele. Um outro, anos depois, me disse que jamais me esqueceria. Vai entender. O primeiro estava convicto, e talvez estivesse certo. Não parei para avaliar porque ainda não encerrei a conta. O segundo talvez não se livre de mim, mas devia. Vai saber.
Há pouco tempo, um parecerista desses de artigo científico, alguém que avalia meu trabalho e escreve algo sob o manto safado do anonimato, parecia brigar comigo, sem nem me conhecer. Talvez ele (ou ela) devesse saber que somos colegas e que em outra oportunidade posso estar no seu papel. Acho que ele (ou ela) não se lembra disso. De todo modo, a falta de educação do ambiente acadêmico, especialmente esse sem rosto e sem nome, me lembra muito as redes sociais, onde as pessoas também se excedem, e podem ser grosseiras e covardes. Vai entender. Irrita? Claro que irrita, mas a gente começa a achar melhor ir tomar um chá e ver uma novela. Noutro canto, no mesmo país, um outro avaliador (ou avaliadora) foi muito gentil e teceu elogios a um trabalho de mesma autoria. Aí a gente lembra que a humanidade ainda resiste e sente uma peninha dos (e das) arrogantes de plantão.
Há um tempo, um aluno que jamais assistiu ao meu curso apareceu, no último dia, perguntando o que eu poderia fazer por ele para aprová-lo. Avisei, com um riso incontido, que não fazia milagres. Ele, cheio de charme, tentou me persuadir, contou histórias peculiares, às vezes dramáticas, relatou problemas dos quais eu deveria me compadecer, mas eu sabia que a lorota tinha limite. Esperei, pacientemente, pelo final da fala entusiasmada do rapaz, já adulto. Quando pude me pronunciar, fiz uma proposta que considero justa até hoje: “Te dou os cem pontos se você me disser qual é o meu nome”. Ele silenciou, depois gaguejou, iniciou uma frase, parou e não soube. Perdeu cem pontos e desistiu. Não fiz o milagre. Haja paciência.
Outro dia, minha mãe me deu um presente de Natal. Meu pai correu para entregar o dele também. O dela era um envelopinho, muito caprichado, com recadinho escrito por fora e dinheiro por dentro. Obrigada, mãe, e a abracei. O do meu pai era o maço de dinheiro em notas menores, sem envelope nem recado. Abracei-o também, dentro do possível para esses corpos contidos e cheios de uma timidez não superada. O importante é que tenho quase cinquenta anos e ainda ganho presentinhos dos meus pais. Parece que ganharei para sempre, enquanto eles forem vivos. É de um cuidado comovente. E o principal: aprendi a fazer igual.
Certa vez, fui estagiar como professora em uma escola privada. Isso faz mais de vinte e cinco anos, mas suspeito que não tenha mudado para melhor. Entrei na sala, a professora regente mal me cumprimentou, apontou um lugar para eu me sentar, me sentei e passei a observar a aula que ela apenas tentava começar. Era quase impossível. Ela precisava, antes, domar algumas dezenas de adolescentes de classe média alta que não faziam ideia do mínimo decoro numa escola. O episódio terminou, para mim, quando um dos estudantes lançou um tênis nas costas da professora. Sim, atirou-lhe um tênis, que pegou em cheio. A cena me assustou enormemente. Observei com olhos atentos, naqueles segundos, a reação da professora, que espumava de raiva, mas precisava daquele frágil e insalubre emprego. E o aluno sabia disso. Ele com a faca e o queijo, brandindo-os vitorioso. Ela se conteve, disse o nome do adolescente com uma voz falsamente aveludada. Dali saí e nunca mais voltei. Pensei em largar a profissão, mas me lembrei de notícias de que em algum lugar, noutras cercanias e condições, talvez fosse possível continuar. Fiquei firme. Também precisava de emprego, mas não a esse custo. Não levei tênis nas costas. Até agora. Não tênis.
Ali pelos vinte anos, resolvi estudar. Mas não era estudar o básico. Eu queria ser cientista. Respirei fundo, reforcei as solas dos sapatos e tomei fôlego para enfiar graduação, mestrado e doutorado, trabalhando, com filho pequeno e o que mais viesse. Minha vida me lembrava joguinhos tipo Space invaders. Mirei, atirei, os obstáculos caindo sem parar, eu me desviando sempre. Consegui. Enquanto fazia todas as tarefas que isso exigia, levei muita alfinetada dos homens ao redor. Afinal, para que fazer isso? Por que uma mulher precisaria de tanto estudo? Infelizmente, não parece anacrônico. Vai entender. Um dia, perdi a paciência e expliquei que um grau a mais aumentaria o meu salário. Era verdade. Acabou o assunto. É isso. Só assim, não é?
Toda vez que eu começo um relacionamento, tenho a esperança de que a pessoa seja compreensiva com o tempo que a escrita me exige. É claro que sempre me engano. Mas a escrita, ah, essa está aí. Fazer o quê?