Farei uns apontamentos que talvez desapontem. Notas de quem anda mais desanimada do que o contrário, mas ainda se senta imaginariamente à mesinha da varanda para ver as pessoas passarem rápidas, fragmentadas pela grade horizontal do portão de ferro. Passam pelo enquadre e não deixam nem sombra, mas deixam um suspiro de fim de dia. O sentar à mesa é imaginário, mas tanto a varanda quanto a mesa existem, estão ali, empoeirando, desbotando, trincando pela agressão de sol e chuva. Vou fazer apontamentos sobre o que é viver neste bairro com jeito de passado, numa cidade que se expande na direção do céu, sem com isso melhorar nada.
Passo grande parte dos meus dias sentada diante da tela do computador. Um desktop, várias vezes atualizado, que sabe mais sobre mim do que minha mãe. Da posição onde está, minha cadeira me oferece a visão do muro, das pleomeles altas, de parte do portão e principalmente uma janela que emoldura tudo. Se eu me esforçar, consigo ver a pessoa que toca o interfone. Geralmente é o carteiro, que normalmente traz livros e me solicita assinaturas. Uma única vez ele trouxe uma multa de trânsito. Já fui perdoada. Na hora, me lembrei bem da minha pressa ao passar pelo radar, louca para chegar em casa e desabotoar aquela angústia. Não adiantou correr. E me deu prejuízo.
Sem fazer esforço, ouço quase tudo o que se passa na rua, diante da casa. Estou no chão, numa casa térrea, posso sentir o cheiro estranho da grama quando chove e, à noite, o perfume do jasmineiro. Ouço partes de conversas, num relance, quando as pessoas conversam no meu passeio ou falam ao telefone ao caminhar. Esses fragmentos de conversas são tão ou mais interessantes do que seria ouvir o diálogo todo. É disso que vivemos: de estilhaços que não se colam mais. Neste bairro, também ouço as batidas de carros na esquina, o choro das pessoas assustadas, um xingo ou outro. Dia desses, escutei uma briga de homens. São tão escandalosos quanto as mulheres raivosas. Ofendiam as mães uns dos outros, se ameaçavam, e pareciam ser contidos por alguém mais discreto. Durou muito. Cheguei a me entediar. Mas nem toda conversa que ouço é desse cariz.
Um dos benefícios de morar num lugar assim, para além da densidade populacional mais baixa e dos tempos mais alongados, é ouvir passar o carro da pamonha. Ele passa lento, tentando convencer alguém, anunciando a pamonha como principal produto entre outros, todos de milho, milho verde. É uma voz metálica, estourada, gravada, reproduzida num alto-falante ruim de um carro velho, mas ouço perfeitamente as promessas do vendedor, muito mais animado do que o entediado motorista que guia o automóvel pelas ruas de calçamento. Às vezes parece que alguém compra uma pamonha ou um curau, mas não tenho vontade de confirmar. Não como pamonha, mas sinto uma alegria incontida quando vivo essa situação que me dá a sensação de parar (n)o tempo. E assim também com o carro da vassoura, o do abacaxi da massa amarela (do Espírito Santo!), o dos ovos (grandes!) e o rapaz que vende pão de bicicleta. Estamos todos ao rés do chão. Saímos com dinheiro vivo para comprar produtos que nos chegam à porta. Nós mesmos, em roupas de faxina.
Há alguns meses, ao visitar uma pequena cidade no interior do estado, tivemos a experiência do carro de som que anuncia a morte de alguém. Ainda há. Morreu o Boné, sabe-se lá quem ele era, mas mereceu o anúncio em praça pública, com informações sobre enterro e velório. As pessoas da cidade levantaram os olhos por alguns segundos para escutar. Nenhum burburinho. A vida seguiu do lado de cá. Morreu o Boné. Os forasteiros, sim, manifestaram surpresa, encantamento, diversão até. Quem era o Boné? Deixa esposa e filhos? O que ele fazia? Usava um boné peculiar? Vá em paz, Boné. E ficamos um pouco alegres ao assistir à cena do carro de som circundando a praça central da cidade. Descanse, Boné, seja lá o que você tenha sido.