Palavras traiçoeiras

Na tradução, palavras podem sugerir percepções elusivas, cambiantes e até contrárias às ideias originais do autor
Sérgio Sant’Anna, autor de “O conto zero” e outras histórias
01/07/2025

Começo com uma citação de Sérgio Sant’Anna, em Um crime delicado. Trata-se de uma observação do protagonista/narrador do romance, o crítico de teatro Antônio Martins, sobre trechos de carta que havia escrito a sua amada Inês: “Ah, como são escorregadias e traiçoeiras as palavras, que, uma vez pronunciadas ou escritas, logo nos obrigam a enunciar outras, a fim de esclarecermos as primeiras, e assim por diante”.

Essa necessidade de interpretação/explicação dos textos tem, claro, vinculação direta com o processo tradutório. A tradução surge como elo fundamental e incontornável na cadeia textual infinita de criações, interpretações, esclarecimentos.

O problema é que as palavras — escorregadias — indicam significados, mas não os definem exatamente. Traiçoeiras, podem sugerir percepções elusivas, cambiantes e até contrárias às ideias originais do autor. Sempre será preciso algum grau de explicação do próprio autor; ou, do leitor/tradutor, sua própria interpretação. O lamento de Martins faz todo o sentido, porque os sentidos não se prendem às palavras. Apenas com elas cultivam laços tênues e provisórios, sempre sujeitos a interferências de todo tipo.

A ilusão de transportar a realidade para o papel — quimera que nos assombra a todos — é atraente e cativante, mas não deixa de ser uma ilusão. A impermanência dos sentidos e a vinculação imperfeita das ideias com as palavras sabotam a expressão do concreto na escrita. E, no entanto, lemos e entendemos — cada qual à sua maneira.

Pouco adiante no texto, o protagonista pondera consigo mesmo, com certo desconsolo, sobre “a perseguição desse ideal fugitivo e talvez inalcançável que é a verdade”. No caso, a sua verdade, no julgamento em que era réu. Considera que, embora inatingível, essa busca acaba produzindo um efeito colateral auspicioso: iluminar aspectos até então ocultos da realidade.

Trata-se de uma reflexão e de uma busca que se realizam, basicamente, com a construção de textos sucessivos. Textos esses elaborados com as mesmas e inescapáveis — mas ainda assim úteis, na falta de algo melhor — palavras escorregadias e traiçoeiras.

Estamos diante de processos de interpretação e reinterpretação da realidade; de criação e reinvenção. A busca da verdade parece não ter fim, e a natureza mesma das palavras — com seus sentidos efêmeros e imprecisos — ajuda a perpetuar um processo irremediavelmente infinito, mas necessário e, acima de tudo, gerador de externalidades positivas, como afirma o protagonista Antônio Martins.

A relação do texto com a realidade — associada à busca da verdade e à iluminação de aspectos laterais dessa mesma realidade — remete ao pensamento do arquiteto e designer belga Victor Horta, ícone do movimento art nouveau. Para ele, artista e autor, o homem não cria, apenas interpreta. Mais uma indicação, de uma fonte bem distinta, da complexidade da relação do homem com a realidade, seja por palavras, seja por outro meio qualquer de expressão artística.

Em todos os casos, as aproximações sucessivas e imperfeitas nos permitem enxergar e compreender diferentes facetas ou interpretações da realidade, sem, contudo, atingir seu núcleo — aquele núcleo anassêmico de que falam os pós-estruturalistas.

A expressão parecerá sempre curta, inexata e hesitante, seja na intepretação da realidade seja na tradução, para transmitir toda a extensão daquilo que se percebe. E ainda assim escrevemos, lemos, interpretamos, explicamos, traduzimos. Sem muitas ilusões sobre nossas possibilidades de acerto.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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