Neruda em tradução

Além de grande poeta, o Nobel de Literatura chileno também deixou reflexões sobre o ofício do tradutor, reunidas na autobiografia "Confesso que vivi"
O chileno Pabro Neruda, autor do soneto “Sangre de toro”
01/10/2021

Pablo Neruda, além de haver militado como poeta, tradutor, memorialista, diplomata e político, nos legou interessantes reflexões sobre a linguagem, a criação literária e a tradução. Inscreveu em sua obra diversos pensamentos sobre essas matérias, alguns dos quais comento aqui. A fonte será, principalmente, a autobiografia Confesso que vivi, na tradução da também poeta Olga Savary.

Tudo começa pela palavra, como elemento primordial do ato criador. Neruda aponta a força desse elemento e, mais ainda, o ímpeto que lhe oferece sua circunstância, como vetor de mudança cabal de sentidos: “Tudo está na palavra… Uma ideia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu…”.

A circunstância também modifica o autor, em seu esforço de esculpir no papel a realidade, tal como a percebe ou sonha. E o autor, inspirado por influxos que lhe vêm do ambiente, precisa inserir em sua criação — o texto — a alma desse sopro. No fim das contas, autor, ambiente e texto se retroalimentam, influenciando-se mutuamente, num jogo de que o leitor também participará, quando chegada a hora. Nas palavras de Neruda: “O homem não é só o estilo. É também o que o rodeia e, se a atmosfera não entra no poema, o poema está morto — morto porque não pôde respirar”.

O ambiente destila também poesia, que o autor, e especialmente o poeta de antenas aguçadas, pode e deve captar e insculpir em papel. Impactado pelas paisagens que se lhe descortinavam em viagem pelo rio Yang-tsé, Neruda refletia: “Uma poesia profunda se desprende desta natureza grandiosa, uma poesia breve e nua como o voo de uma ave ou como a cintilação prateada da água que flui quase imóvel entre os muros de pedra”.

Voltando à questão do estilo, o poeta chileno destaca o papel da linguagem e o emprego que dela faz o escritor: “O uso do idioma como veste ou como a pele no corpo, com suas mangas, suas emendas, suas transpirações e suas manchas de sangue e suor, revelam o escritor. Isto é o estilo”.

Desse vaivém entre autor e linguagem, entre o ambiente que os cerca e o texto que finalmente se inscreve, nasce uma escritura plástica, moldável, sensível não apenas à pena e à vida do autor, mas principalmente às inclinações e idiossincrasias do leitor. Para Neruda, “a poesia não é uma matéria estática mas uma corrente fluida que muitas vezes escapa das mãos do próprio criador. Sua matéria-prima está composta de elementos que são e ao mesmo tempo não são, de coisas existentes e inexistentes”.

Escritor premiado e mundialmente reconhecido, Neruda refutava a originalidade como mérito, ressaltando, em seu lugar, a personalidade do autor e a influência do meio e das leituras de cada um: “Não creio na originalidade, que é mais um fetiche criado em nossa época de demolição vertiginosa. Acredito na personalidade através de qualquer linguagem, de qualquer forma, de qualquer sentido da criação artística. Mas a originalidade delirante é uma invenção moderna e uma fraude eleitoral [menção às escolhas da crítica] […] Nos momentos de maior transe criador, o produto pode ser parcialmente alheio, influído por leituras e pressões exteriores”.

Para terminar, leiamos uma ideia de Neruda sobre a tradução, a partir de sua experiência na versão para o espanhol de Romeu e Julieta. Ideia que tanto valoriza o trabalho do tradutor, como criador, quanto a qualidade inestimável da grande obra literária, que não é necessariamente original: “Eu traduzi com devoção para que as palavras de Shakespeare possam comunicar a todos, em nosso idioma, o fogo transparente que nelas arde há séculos sem se consumir”.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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