Na falta da teoria, a tradução como artesanato

A tradução não é um ofício facilmente teorizável. Há diversos enfoques sobre a tradução, e mesmo vários conjuntos de regras aplicáveis
01/12/2009

A tradução não é um ofício facilmente teorizável. Há diversos enfoques sobre a tradução, e mesmo vários conjuntos de regras aplicáveis, mas poucos se arriscaram a construir uma verdadeira teoria para esse tipo de escritura. Algo que tenha ao mesmo tempo elegância, grande capacidade explicativa e grande resistência ao falseamento.

Não que não haja “teorias” tradutórias ou sobre tradução, no sentido de um “conjunto sistemático de opiniões e idéias sobre um dado tema”. Isso há, e muito. Mas não há uma “teoria”, no sentido mais estritamente filosófico: não há conhecimento sistematizado, com mínimo de aceitação geral, que permita organizar e classificar a tradução de maneira sistemática; e muito menos que possibilite prever eventos tradutórios.

George Steiner sustenta sua dúvida sobre a possibilidade de existência de uma “teoria de tradução”, no sentido rigoroso do termo, pelos parcos conhecimentos que temos sobre a organização e o armazenamento de diferentes línguas que coexistem numa mesma mente. Eis o mistério da tradução. A convivência de várias (ou pelo menos duas) línguas na mesma mente é justo o que permite a tradução — tradução com um mínimo de qualidade. Nem sempre é uma coabitação pacífica, pois vive crispada de conflitos, “roubos” e interferências indesejadas.

Mas são sistemas que se toleram e, mesmo, que se sustentam uns aos outros. O conhecimento de uma segunda língua pode facilitar a aquisição de uma terceira. Não se sabe ao certo, contudo, como esses sistemas se organizam na mente humana e, mais importante, como se relacionam. É da (boa) relação entre eles que depende o processo tradutório. Uma boa teoria da tradução deveria estar de algum modo vinculada a uma boa teoria da mente.

Não há pouca gente interessada em conceber uma teoria desse tipo. Uma estrutura intelectual que sustente outra estrutura, mais palpável, embora virtual. Uma máquina de traduzir eficiente precisa de uma teoria sólida. Os “motores” de tradução são ainda toscos na ausência dessa estrutura intelectual. Enquanto tais máquinas virtuais forem baseadas em listas de palavras (ou conjuntos de palavras) relacionadas, e não numa teoria digna do nome, será vã nossa esperança de obter uma boa e rápida tradução automática.

A internet quase suplica por uma teoria tradutória minimamente razoável, que não há. Seria uma das invenções do século, uma máquina não apenas de traduzir, mas principalmente de fazer dinheiro. O comércio (interlínguas) seria o novo nome da tradução. A máquina de traduzir revolucionaria nossa maneira de ler o mundo — ruiria parte de um dos muros mais altos e espessos que existem na humanidade.

Mas ainda não chegamos lá. E na falta de uma teoria da tradução minimamente consistente, temos de tratar o ofício como arte. Ou melhor, como artesanato. A tradução, como outros tipos de escritura, é algo que não pode ser reproduzido nem fabricado em série. É trabalho de tradutor-artesão, que faz sempre uma obra única, teimosamente irrepetível. É trabalho de ourives e de oleiro. É obra de escritor.

Um mesmo tradutor não conseguiria, a não ser por um exercício quase insano da memória, repetir uma mesma tradução (longa) com perfeita exatidão. Muito menos o farão dois ou mais tradutores diferentes. O milagre da Septuaginta não seria facilmente repetível hoje.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho