Esquecimento

A tradução é o remédio contra o esquecimento do texto
31/07/2018

A tradução é o remédio contra o esquecimento do texto. Talvez o único remédio. É a maneira de mantê-lo vivo e inteligível, mesmo dentro de uma mesma língua. Talvez especialmente dentro de uma mesma língua. Tradução e atualização atuam em conjunto para salvar o texto do natural hermetismo que lentamente o recobre.

O remédio talvez não seja o ideal. Tampouco será suficiente. A recuperação não será total. Mas é a opção que temos para revitalizar a escritura perdida em si mesma, cada vez mais cadaverizada pela passagem do tempo.

Tempo engendra esquecimento. Palavras que se enrijecem pouco a pouco, assumindo forma estática e esvaziando-se de sentidos. A tradução, roçando ali a casca oca, instila nova aragem de vida, projetando a perpetuação do original.

O texto logo evapora da mente. Foi-se o tempo em que se guardava a escritura no coração — ou no cérebro, melhor dizendo. Ou, ainda, em cada célula do organismo. Cada palavra decorada. Cada sentido gravado. E ainda assim, quem jamais resistiu à força do tempo e do esquecimento?

A escritura, que evapora rápido da mente, perdura muito mais no papel, sem dúvida. Mas também evapora do papel. Do papel evapora sua porção inteligível. Sobram os esqueletos quebradiços. É só dar tempo ao tempo. Tudo vira pó. E ao pó tudo se pode perguntar, mas sempre em vão.

O texto, inicialmente carregado de memórias e histórias, naturalmente sofre a decadência e a tendência à insensibilidade. Vai-se tornando insensível aos olhares, às leituras, às interpretações. Transforma-se em papel opaco e estéril.

Nesse mergulho no esquecimento, as palavras perdem paulatinamente o calor que antes transmitiam ao leitor. Perdem previamente o vigor e o viço. Frias, perdem o dom de despertar sensações estéticas. Mortas, provocam o desencanto e o assombro da incompreensão.

Mais do que a má tradução, a não tradução lança o texto nas profundezas do silêncio. No poço do esquecimento. Nenhuma voz mais se ouve dali. Apagam-se as várias línguas e vozes que atravessavam a escritura.

A tradução surge como tábua de salvação. O velho ofício que frequenta os textos passados e os iça para novas leituras. A operação que desbasta a folhagem e permite voltar a enxergar, através, sentidos antigos e novos. Sentidos que, largados à própria sorte, são facilmente tragados pelo tempo e pelo esquecimento.

O tradutor, para recuperar significados, tem por vezes que carregar na intensidade da expressão. Melhor fazer isso que se perder totalmente em explicações. O leitor não precisa nem deseja explicações, dispensa guias de leitura. Quer ser impressionado pela leitura, simplesmente, como o original poderia fazê-lo. Quer também esquecer do seu futuro esquecimento — que certo virá, mais dia menos dia.

Para driblar o esquecimento, há que dar nova potência à escritura. Potência suficiente para disparar a mesma enxurrada de ideias que o original poderia disparar. Ou mais ainda, se possível, com a ousadia de quem trama um novo texto. O tradutor tem sempre de trabalhar com uma reserva de rebeldia que lhe permita, se preciso, dar o salto — e não estacar à margem do precipício. Trabalhar com o sangue misturado à tinta.

Tem que traduzir com os olhos de um deus que tudo vê, que tudo sente por meio dos sentidos de todos os seres de todas as épocas. A sensibilidade, enfim, tem de estar aguçada e pronta para absorver a irradiação antiga que emana do texto.

Infinitas são as interpretações de um texto. Infinitas as formas de salvá-lo do esquecimento. Sempre pela via da tradução.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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