Escala descendente: do pensamento à tradução

O verbo fez-se palavra escrita, e sofreu aí sua primeira transformação na trajetória descendente do suave campo do ideal rumo à rude selva do real
01/04/2007

O verbo fez-se palavra escrita, e sofreu aí sua primeira transformação na trajetória descendente do suave campo do ideal rumo à rude selva do real. Parece existir uma espécie de escala descendente, em termos de, digamos, “completitude”, que vai do pensamento à palavra (falada) e desta à escrita. Richard Wilhelm, tradutor alemão de importantes obras da literatura chinesa, como o tradicional I Ching, dizia que a escrita não consegue expressar as palavras em sua totalidade, e que as palavras não conseguem expressar as idéias em sua totalidade.

A tradução, de certa forma, se inscreve nessa trajetória descendente, agregando um degrau ladeira abaixo. Seguindo o raciocínio do tradutor alemão, poder-se-ia dizer que a tradução não consegue expressar o original em sua totalidade. O que, talvez, não seja exatamente demérito, já que nenhum leitor, por mais iluminado e erudito que seja, consegue captar o original em toda a sua inteireza e em toda a sua riqueza de possibilidades. Sempre escapa algo, que se desvela mais à frente, a outro leitor, talvez em outra época ou em outra língua.

Os meandros da mente, que o texto necessariamente tem que percorrer para fazer sentido, são tortuosa e torturantemente labirínticos, a ponto de não se repetirem com exatidão em duas oportunidades distintas. É como se cada leitura fosse uma experiência única, não passível de reiteração.

Há, claro, uma base comum, que torna, afinal, as coisas e os textos inteligíveis; que, em última instância, permite o fenômeno da comunicação. Comunicação supõe uma estabilidade mínima, uma possibilidade de repetição, mesmo que não exata.

O filósofo americano John Searle, autor de A redescoberta da mente, ao teorizar sobre o conceito de background, usa o exemplo da tradução. Diz Searle que as diferenças de backgrounds, ou seja, as distintas “bagagens” de cada indivíduo e de cada cultura, tornam difícil a tradução de um idioma para outro. Por outro lado, a generalidade do “background profundo” torna possível o fenômeno da tradução. Ou seja, haveria, num nível mais profundo da mente, uma base comum que torna possível a comunicação entre línguas e culturas diversas.

Searle usa um exemplo aparentemente tosco para reforçar seu argumento: “Se você lê a descrição de um jantar festivo na casa dos Geurmantes em Proust, provavelmente deve achar alguns aspectos da descrição enigmáticos. Isto tem que ver com diferenças de práticas culturais locais. Mas existem certas coisas que você pode dar como certas. Por exemplo, os participantes não comem enfiando a comida no ouvido. É uma questão de background profundo”. Algumas coisas não mudam nunca, por mais que mudem as línguas, as culturas e os tempos.

Quanto mais perto da superfície, contudo, maior é a tendência entrópica do sistema. O texto, como expressão superficial da “palavra” e do pensamento, é um sistema de nível potencialmente alto de entropia. A imprevisibilidade da interpretação é um fato que o crítico literário usa como arma. O bom autor usa intencionalmente esse elemento para provocar multiplicidade de efeitos e sentidos. Ao tradutor cabe a função de bússola: instrumento de orientação do leitor-navegante num mar (cada vez mais revolto) de informação e sentidos.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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