Rua da Brisa

A grande injustiça de homenagear um Fulano de Tal ao renomear uma rua que carregava um sopro de beleza pela cidade
Ilustração: Thiago Lucas
05/05/2024

Dia desses, escutei no rádio que o antigo nome da Rua Fulano de Tal era Rua da Brisa. Foi Rua da Brisa por mais de 50 anos, quando então decidiram homenagear Fulano. Fico devendo o nome do cidadão, porque esqueci. Ou não guardei porque fiquei meio chateado. Nada contra o merecimento da personalidade: pode — e deve — ter sido de fato um grande homem. Mas não creio que ele tenha feito mais pelo nosso Brasil varonil do que a brisa.

Virou nome de homem, disso me lembro. Se ainda fosse de mulher. Os homens e sua mania de trocar belos nomes de ruas pelo de algum semelhante célebre. Assim, a Rua do Jogo da Bola vira Marechal Isso; a Travessa das Estrelas vira Desembargador Aquilo; fico com medo de que alguém tenha a ideia de trocar o nome de Dona Zezefreda de uma pequena e simpática rua do bairro pelo de alguma autoridade.

O homem pode ter lutado, e vencido, guerras. Sufocado revoltas. Pode ter sido um professor admirado e inspirador. Um engenheiro que, no fundo, queria ser ator de teatro. Promotor público muito atuante à sua época, mas que se aposentou cedo para cultivar bananas no litoral. Mas, poxa vida, Rua da Brisa é tão bonito. Quem sabe alguém passou por ela num dia de um calor infernal e, mesmo não havendo uma brisa de verdade, só de olhar a placa já tenha sentido algum refresco.

Eu adoraria preencher cada formulário que me apresentam nesta vida com um endereço bonito assim. Talvez o funcionário achasse que estou brincando: “Rua da Brisa. Sei.” E carimbaria o formulário com má vontade. Todos andam muito sérios, mal-humorados, inconformados de não virar nome de rua.

Na Rua da Brisa haveria árvores, pássaros, gatos preguiçosos e risadas de crianças. Os adultos iriam para o trabalho sorrindo e voltariam assobiando. As janelas, sempre abertas, exibiriam vasos com flores e, eventualmente, cortinas abanando. Milagrosamente, as chuvas saciariam a terra e as plantas, mas não molhariam ninguém passando na calçada. Provável que, da terceira casa da direita, aquela amarela com janela rosa, viesse uma música divina. Pixinguinha, por exemplo, sempre quis morar na Rua da Brisa. Quanto aos casais, ai daquele que tentasse andar sem as mãos dadas — os cachorros, papagaios e anões de jardim seriam treinados a, nesse caso, vaiar como se vaia no estádio de futebol a entrada em campo do trio de arbitragem.

Mesmo o sujeito importante que virou o nome da rua ia querer morar lá (se vivo). Protestaria contra o vereador que teve essa ideia infeliz, e lutaria com toda sua importância para desfazer a bobagem. Caso não conseguisse, numa madrugada silenciosa de lua cheia iria em pessoa, mascarado e de capa preta, trocar as placas para devolver o nome original.

E a brisa continuaria a soprar e refrescar a todos, a secar o suor dos meninos correndo, varrer as folhas da calçada e levantar as saias das moças. Seria um alívio, já que, também no rádio, ouvi a meteorologia prever para hoje um calor dos infernos. Quero ver o que o Marechal Isso ou o Desembargador Aquilo vão fazer a esse respeito. Quero só ver.

Cássio Zanatta

Nasceu em São José do Rio Pardo (SP). Já foi revisor, redator, diretor de criação, sem nunca deixar de ser cronista. Publica nas revistas digitais Rubem, The São Paulo Times e no jornal A Tribuna. É autor de três livros de crônicas: A menor importância, O espantoso nisso tudo e O máximo que eu consegui.

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