A travessia da tradução

Traduzir parecia fácil. Difícil era descolar as palavras dos sentidos que sempre lhes atribuíra
02/02/2016

Traduzir parecia fácil. Optara pela estratégia literal (ou quase isso). Palavra por palavra, devagar mas em ritmo seguro. Faltava, claro, como que um pouco de sal. Um toque pessoal, talvez. Ao final do trabalho, tudo soava um tanto artificial. Texto sem alma.

Traduzir parecia fácil. Difícil era descolar as palavras dos sentidos que sempre lhes atribuíra, para injetar-lhes ânimo novo. Ou, talvez, para insuflar em si mesmo nova forma de compreendê-las.

Parecia necessário desaprender algumas coisas, livrar-se de parte da carga do passado. Lastro vazio de sentido, embora inicialmente necessário para navegar texto adentro. Chegara à conclusão de que traduzir poderia exigir certo desarme. Novos olhares. Arrancar sentidos que, acreditava, andavam enganchados em palavras velhas, gastas.

Traduzir era fácil, antes de que se lhe iluminasse a consciência. Via pelas frinchas do texto, pelas entrelinhas. Percebia novos caminhos para a reconstrução do texto, para dar-lhe vida nova — não apenas nova roupagem. Seria transformação mais profunda, que valorizaria o original e faria jus à invenção do autor.

Acreditava na tradução como ferramenta de renovação da literatura. Forma de dar sobrevida aos melhores textos, resguardá-los para as novas gerações, trasladá-los a outras culturas e eras. Eram nobres motivos.

Traduzir parecia fácil, a princípio. Mas reescrever palavra por palavra não era opção, embora pudesse ser inicialmente tentador. Não queria secar o texto nesse processo de reescritura. Pretendia irrigá-lo com o veio da criatividade, mesclando a sua à do autor.

Depois, traduzir já não lhe parecia tão fácil. Queria percorrer a escritura com desassombro e, simplesmente, possuí-la.

Queria preservar aquele belo espetáculo que imaginara perceber na primeira leitura do original. Aquela miríade de aparências cobrindo todo o texto, remetendo a um descortinar de sendeiros interpretativos. O texto lhe abria toda uma amplitude de leituras possíveis. Algo que o deixava maravilhado e ansioso por terminar a leitura — mas, ao mesmo tempo, por prolongá-la indefinidamente.

Traduzir era mesmo fácil. O original parecia esperar a reescritura, mesmo que em clima de alguma tensão. Aquela que existe entre a exigência da sobrevivência e a necessidade de preservação de certos significados primeiros. Ainda assim parecia fácil superar essa tensão, com persistência e uma pitada de inventividade. Afinal, o texto não se termina nunca, em vários sentidos.

Depois, traduzir já não lhe parecia tão fácil. Queria percorrer a escritura com desassombro e, simplesmente, possuí-la. Tomar posse, sem peias. O que almejava era derramar um olhar tranquilo, esticado e sem pressa, que fosse lentamente se acostumando à penumbra do texto, lentamente divisando os contornos de todos os sentidos.

Era tudo o que queria. Mas simples não era. Aquela mesma miríade de aparências parecia transformar-se logo em névoa densa, camadas de poeira cobrindo e velando o texto. Como navegar dentro do nevoeiro? Como devolver à escritura, na tradução, ao mesmo tempo a inteireza e todas as imprecisões de seu sentido original?

Também percebia que o tempo cobria o texto original de asperezas difíceis de limar na reescritura. Não queria eriçar as arestas. Não queria um tecido excessivamente ríspido, até agressivo ao olhar e ao tato.

Em transe, suplicava que o livrassem desse texto torcido, de significados escassos e herméticos. A tradução o instigava. Seu ânimo flutuava entre o desespero e a empolgação. Desejava ferir, torturar, perfurar as palavras à procura de um derrame de sentidos. Traduzia à espera de um milagre. Traduzir, finalmente, lhe parecia impossível. Como deve ser.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho