A tradução do Quixote

No "Quixote", a tradução se enreda na ficção e nela se torna uma coisa só
29/04/2018

 

A tradução é um fato muito presente no Quixote. Na verdade, o livro se revela como tradução do árabe ao espanhol, por um “mourisco aljamiado”. Dois personagens de língua árabe são os “autores” da maior obra literária em língua espanhola. São eles o autor original, que redigiu a primeira versão do texto, em árabe; e o tradutor mouro, que a transportou para o castelhano.

O tradutor que trouxe Dom Quixote para uma língua cristã não se limita apenas a verter o texto, mas o edita segundo seus próprios critérios. Por sua vez, o narrador (talvez persona do próprio tradutor, talvez outro personagem em si mesmo) parece ter acesso tanto à tradução quanto ao texto original do autor árabe; e do alto da condição de senhor de todos os textos, opera alterações adicionais na obra que chega ao leitor. Tudo, afinal, é ficção, mas ficção feita para soar como verdade.

No capítulo XVIII da segunda parte do livro, mostra-se claramente o papel ativo do tradutor na conformação final do texto. A cena retrata a chegada de Dom Quixote e Sancho Panza à casa de Dom Diego de Miranda. Conta o narrador que a versão original do autor árabe trazia riqueza de detalhes na descrição da casa do fidalgo. Mas a versão do tradutor mouro é seca e muito silencia sobre o cenário, com o argumento de que a história que se está narrando encontra mais força na verdade do que em frias digressões. Pode ser. Não se sabe bem o que se perdeu. Fica a certeza do poder editorial do tradutor e da influência de suas preferências sobre a versão final que nos veio às mãos — depois de outras tantas edições.

No Quixote, a tradução se enreda na ficção e nela se torna uma coisa só: texto com objetivo de narrar uma história real. Em determinados momentos, o tradutor não corta, mas agrega ao texto. Afinal, eis aí o trabalho de edição: não se trata apenas de reduzir, mas também de aumentar, segundo a conveniência e os objetivos específicos que se têm em mente. No capítulo XXIV da segunda parte, lemos que o tradutor acrescentou ao texto notas que achou à margem do volume escrito pelo autor árabe. Nelas, o autor — que, supõe-se, busca a verdade —contestava o conteúdo da cena que acabara de narrar no capítulo anterior. Argumentava que era por demais irreal. Ainda assim, transferia ao leitor — último elo dessa longa cadeia textual — a autoridade para julgá-la falsa ou verdadeira.

No capítulo XXVII da segunda parte, vemos outra interferência explícita do tradutor (as interferências veladas são insondáveis). No texto, o tradutor conta que o autor árabe inicia a seção jurando como “católico cristão”. E raciocina: como o católico cristão diz a verdade quando jura, o autor, embora não fosse cristão, quis dizer que seu texto, naquele trecho, era mais do que nunca a mais pura verdade. Vemos outra vez a estratégia de apresentar a ficção como verdade. E mais: de apresentar o texto, temperado sob duas camadas ficcionais, como verdade incontestável, protegida pelo juramento solene do autor e pela invocação da fé. Segue-se, claro, algo inacreditável, mas literariamente saboroso.

No capítulo XLIV da segunda parte, novamente vemos a pena insidiosa do tradutor. Nessa seção, o tradutor confessa que seu trabalho de edição foi muito além de reter pormenores. Assevera que, na primeira parte do livro, acrescentara algumas novelas inexistentes no original, como que para inserir mais condimento ao texto seco e limitado do Quixote do autor árabe. E que, na segunda parte, mudara de estratégia, passando a ater-se o mais possível à verdade, desbastando-a de pormenores e floreios inúteis. Por fim, pede que não se despreze seu trabalho por isso; que, ao contrário, seja louvado não pelo que escreveu, mas principalmente pelo que deixou de escrever. Pela elegância, ainda que infiel, que imprimiu ao texto.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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