Personagens pensam?

Para iniciantes, a melhor sugestão será fazer com que a personagem pense o menos possível, deixando que suas ações deixem entrever seus pensamentos
Ilustração: Fabiano Vianna
02/04/2021

1.
Personagens não têm vida própria. Fazem o que o ficcionista deseja que façam. E por isso agem de maneira muito aproximada de como nós, seres humanos, agimos. Uma das características mais visíveis do ser humano é sua capacidade de pensar e imaginar. Essa faculdade levou o homo sapiens a dominar a Terra e, convenhamos, a estragá-la. Se nós pensamos, é, portanto, implícito que a personagem pense. Isso, na mão do ficcionista amador, é uma solução. Na mão do ficcionista profissional, é um problema.

2.
Literatura é questão de medida. Para não haver mal-entendidos, é bom reiterar, como se preciso fosse, que o escritor não tem medida alguma para criar o que bem entender, não tem medida alguma para expressar-se, nem ideológica, nem estética, nem ética. A medida de que se fala é apenas determinada pelo que funciona e pelo que não funciona, sob o ponto de vista da técnica, da estética e da economia textual. A medida, nesse sentido, não é “o que devo mostrar para o leitor”, mas, sim, “o que não devo mostrar para o leitor”, e disso vai depender a história que está sendo contada. Numa história de crimes e detetives, o escritor tem um imenso trabalho para ocultar informações que, trazidas à luz, poderiam desfazer o mistério de quem é o assassino e, ao mesmo tempo, mostrar dados irrelevantes, que levam o leitor ao engano. Claro, esse é um exemplo grosseiro. A questão é bem mais refinada.

3.
A questão refinada implica o leitor e sua capacidade de intuição e imaginação. Com essas duas capacidades, ele vai “entender” a história, não no plano banal dos episódios, “a personagem fez tal coisa e depois fez aquilo”, pois isso um ficcionista razoável vai lhe oferecer, ou espera-se que ofereça com nitidez; refere-se a algo mais profundo, que vem a ser o propósito do texto, em suma: por que esse texto existe, o que o texto conta? Aí é que entra em cena, em primeiro lugar a intuição do leitor acerca da história que está lendo. Essa intuição dá-se desde logo num plano, digamos, epidérmico, certa “palpitação” que ocorre no sentimento do leitor. Num segundo plano, mais relevante e construtivo, está a imaginação, que vai recriar essa história a partir das conexões — na maior parte implícitas — que a mesma história estabelece entre um episódio e outro. Mas atenção: essas conexões são um constructo intelectual do leitor, que entretanto parte de uma elaboração prévia do ficcionista, isto é: é o ficcionista, com sua arte, que vai propiciar ao leitor a oportunidade de fazer essas conexões a partir dos indícios que são inseridos na história. E com isto, o presente parágrafo não diz nada de novo, mas foi mantido apenas para que não se perca do fio da meada lógica.

4.
Um bom exemplo das operações de intuição e imaginação pode ser aplicado no conto A missa do galo, de Machado de Assis. Numa primeira leitura, temos a intuição de que aconteceu alguma coisa entre a “boa” Conceição e o jovem Nogueira, que vai além dos episódios ali narrados, aliás, de uma aparente trivialidade. Muitas pessoas, por preguiça, falta de sensibilidade ou impaciência, ficam por aí: “não gostei”. Outras, mais atentas e intrigadas, podem ir a uma segunda leitura — ou terceira, etc. — quando, propiciado pela imaginação, revela-se o que de fato aconteceu: um intenso drama de paixão, interdição moral, tentativa de sedução, tudo o mais que se segue dentro desse infortunado campo semântico. O mesmo processo pode ser aplicado a qualquer conto de Hemingway ou Carver.

5.
Aqui se retoma a questão do pensamento da personagem, e isso está ligado à quantidade de acesso que o ficcionista deseja dar à interioridade da personagem. [Esse processo é indiferente se se trata de uma focalização interior em primeira ou terceira pessoa; em ambas, o leitor poderá ter esse acesso. Não subsiste, portanto, a afirmação ligeira de que só com uma focalização em primeira pessoa é que o leitor conhece o pensamento da personagem]. O problema, redizemos, é o grau desse acesso. Há casos em que o autor deseja que o leitor saiba tanto quanto a personagem; noutros, que saiba menos que a personagem e, por fim, há os casos, que saiba mais do que a personagem. Isso implica o controle sobre a medida, e esta é: devo descobrir e delimitar algumas questões, referentes a esse grau.

6.
No parágrafo 1 afirmou-se que o pensamento da personagem é uma solução para o ficcionista amador. [Diferente do ficcionista iniciante, que deseja aprender o ofício, o amador acha que domina tudo do fazer literário e escreve dez livros sem nenhuma autocrítica e sem atentar para a crítica alheia]. O pensamento da personagem pode ser uma “solução” pois o amador coloca ali tudo o que a personagem sente, percebe, raciocina e, não contente com isso, coloca na cabeça da personagem, inclusive, fatos da própria história. [E Luma pensou: “Oh, como estou apaixonada por Denis, mesmo que ele não me dê a menor atenção. Ontem, na escola, tentei falar com ele e ele fugiu de mim”.] Quem lê isso sente-se um tolo. Resulta desse desastrado procedimento que a personagem [e a história] não deixa nenhuma margem de interpretação ao leitor, que se vê, assim, uma entidade passiva. Se não a abandonar em meio, chegará ao fim da história sem o menor interesse em relê-la.

7.
O pensamento da personagem, entretanto, será um problema para o ficcionista profissional, e isto porque será necessário estabelecer uma diferença — entre o que o leitor sabe e a personagem sabe. Essa assimetria de saberes reflete o conflito, que dará todo o interesse à leitura. E aqui estamos naquele jogo de esconde-esconde com o leitor. O que posso revelar a ele de modo explícito — via pensamento da personagem — e o que devo ocultar? E aí é que entra a arte literária e suas peculiaridades, adquirida com autocrítica, paciência, conhecimento, prática e senso do real. Sim, é possível que todo um romance se passe em pensamentos da personagem, e a história literária tem centenas de bons exemplos disso, mas o fascínio que pode exercer está naquilo que o leitor irá descobrir no subtexto, no não-dito. Dostoiévski começa o Memórias do subsolo com a seguinte afirmação: “Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável”. Claro que ninguém acredita que essa personagem esteja a dizer essas coisas acreditando nelas. O romance o confirma. Há, portanto, uma disparidade entre o que a personagem pensa e o que o leitor sabe. Em A náusea, de J.P. Sartre, aparece uma passagem em que a personagem central pensa: “Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias, sem rima nem razão: é uma soma monótona e interminável”. Claro, perante o caráter categórico dessa reflexão, Sartre dá ao leitor a possibilidade de pensar de modo totalmente diverso, ademais porque essa ideia de Antoine Roquentin está datada por um momento filosófico do Existencialismo, ou, quem sabe, por uma depressão aguda.

8.
Para quem se considera iniciante, a melhor sugestão será fazer com que a personagem pense o menos possível, deixando que suas ações deixem entrever seus pensamentos. O sofrimento de amor da jovem Luma, do parágrafo 6, pode ser trazido ao leitor por algo concreto: “Luma tinha escondido o retrato de Denis na mochila, e olhava-o a toda hora. Num intervalo, procurou falar com ele, e Denis, percebendo-a vindo pelo corredor, correu para dentro da cantina da escola”. Funciona melhor, não? Deixe que o leitor imagine os tristes sentimentos de Luma. Aliás, uma sugestão prática: no seu texto, utilize o recurso “localizar”, e ponha ali o verbo “pensar” em suas várias declinações. Aparecerá centenas de vezes. Elimine-os. As frases terão de ser reescritas, mas brilharão de originalidade e força.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho