Flashbacks

Contar fatos do passado em uma narrativa pode ser tedioso para o leitor, então é preciso saber dosar esse artifício — e é aí que reside a técnica do escritor
Ilustração: Conde Baltazar
01/04/2022

1.
Ficcionistas adoram escrever flashbacks. Leitores os detestam. Por que, então, usá-los?

2.
O argumento mais vistoso: os flashbacks servem para informar situações pregressas da personagem, necessárias para que ela seja entendida no momento “presente” da narrativa. Dizem: “Mas eu preciso contar isso do passado, senão a personagem está incompleta”. Ou: “O leitor precisa ter essas informações, senão a história não funciona” etc. Outros argumentos somam-se a este, e apenas mascaram o deleite do ficcionista em dar marcha à ré para suspender a “história presente” e assim variar de ares, mudando tempo, espaço etc. para depois retomar a história. Iceberg à vista.

3.
Cabe definir: “história presente” é a que chama o interesse do leitor, a principal, aquela que o leitor deseja seguir, independente de ser escrita no presente do indicativo ou no pretérito. Há [poucos] casos, entretanto, em que a história do passado é a mais importante, e aqui é possível lembrar de O náufrago, de Thomas Bernhard; a história é toda contada em primeira pessoa, no pretérito, por um amigo da personagem central. Nessa novela, há cenas no “momento presente”, mas são efêmeras, e esse momento é ocupado pela espera do narrador para ser atendido numa estalagem. Digamos: toda a ficção de Thomas Bernhard é um grande flashback. Não é disso que falamos. Aqui, nos interessa é o flashback no sentido estrito, quando a “história presente” é interrompida para que se contem fatos do passado.

4.
O ir e vir fantasmático da narrativa, entretanto, é prática reiterada, e, normalmente, busca recuperar circunstâncias da “pré-história”; esse hábito pode ser atribuído ao psicologismo literário dominante em nossos dias: quer-se explicar à força por qual razão a personagem é o que é [sua questão essencial, pode-se denominar]. As pessoas “reais” poderão fazer isso, com proveito, num tratamento psicanalítico. Mas, em que medida isso é necessário na ficção? Clément Rosset nos assegura que os impulsos da paixão explicam tudo no texto, menos a si próprios; assim, a avareza “explica” Harpagon — a personagem de Molière — mas nada “explica” a sua avareza. Não é preciso. As explicações das origens das idiossincrasias das personagens são irrelevantes. Isso não significa que o ficcionista não deva conhecê-las, muito ao contrário. Conhecendo-as, conseguirá dar consistência e verossimilhança à personagem.

5.
Veja-se o lugar-comum de milhentas histórias de nosso tempo: a personagem se comporta de maneira esquiva em suas relações sociais, afetivas — certo, isso não é problema literário; o problema é que o ficcionista acha que tem o dever de explicar o porquê dessa conduta, e, para tanto, se socorre de flashbacks sem fim, os quais são sempre situados na infância passada no interior do país, com um pai displicente e bêbado que abandona a família, uma mãe meio louca ou submissa, pobreza, irmãos controladores, bullying na escola, enfim, o que já sabemos, e pior: prevemos. [Talvez não fosse má ideia considerar a hipótese de abandonar esse perigoso looping].

6.
Outra razão para o uso obsessivo de flashbacks é para dar informações de bricabraque acerca de acontecimentos concretos da pré-história, como a morte de alguém, uma mudança de cidade, um incêndio florestal, um nascimento, uma transferência de escola, um casamento, um divórcio etc. Convenhamos: a qualidade de nossa literatura não precisa usar esse golpe tão baixo como preguiçoso.

7.
O flashback é antevisto com desânimo e suspiro, levando o leitor a saltar páginas, ao reencontro da bendita história de que estava gostando tanto e que deseja saber o andamento e, logo, o fim. O pior é quando o estratagema aparece em momentos previsíveis no andamento da história, como no início de capítulos, ou no meio, ou no fim. O leitor entra numa espiral de tédio e há o risco de que abandone o livro.

8.
Temos de ser generosos com o leitor. Isso implica uma série de atitudes narrativas que, sem perda alguma de qualidade literária, conduzam-no para dentro de nossa história; o que interessa, portanto, é que essa história chegue da forma a que permita uma fruição sem sobressaltos. Sua novela poderá ser cheia de sobressaltos — mas quando esse sobressalto significa dificuldade de apreensão do que se quer dizer, ou barrancos a serem saltados, aí temos uma questão a ser resolvida. Os flashbacks entram nessa conta de pesares.

9.
Então, como resolver o problema? Para já, vamos excluir a volúpia narrativa do ficcionista, que já vimos no parágrafo 2 , e que pode gerar grandes estragos. Fiquemos apenas nas informações “necessárias” [sempre com um pé atrás quanto a essa necessidade]. A fórmula não é complexa para quem possui um bom controle dos materiais de trabalho. Em primeiro lugar, é preciso eliminar tudo aquilo que achávamos profundamente necessário e que, na verdade, não o são, foi um equívoco de julgamento. Com o que sobrar, façamos uma nova peneira. O que, a nosso juízo, não pode ser absolutamente eliminado, cabe ver como inserir na história sem cortar a história, quer dizer: o leitor não deve ter a impressão de que foi obrigado a ir às trevas do passado, andou se aborrecendo por lá e voltou ao desejado e luminoso presente.

10.
Aí cabe utilizar técnicas que levem ao leitor à sensação de que a história “presente” nunca é abandonada. O recurso mais rasteiro é fazer com que a personagem “conte”, num diálogo, as coisas pretéritas. [Mas atenção: diálogo não é para a personagem contar a história, mas para revelar a personagem]. O leitor sagaz logo se dá conta de que foi ludibriado, tal como acontece nos filmes B, em que a personagem, no início, relata aspectos da pré-história a um interlocutor, e o espectador sente-se um pateta. O recurso de fazer com que a personagem se recorde de fatos pretéritos, desde que não seja algo massivo e recorrente, e desde que não assuma protagonismo ante a história “atual”, pode ser uma solução, tendo o cuidado de evitar o uso explícito dos enfastiantes verbos “lembrar”, “recordar[-se]” e congêneres.

11.
O artifício que mais passa despercebido é o que traz informações pretéritas de maneira casual, como este, visto num capítulo de romance: “Depois de trezentos quilômetros, ele estacionou o Hyundai em frente à casa e se sentou à sombra da mangueira, ali onde seu padrinho suicidou-se com um tiro e sua mãe disse para seu pai afastar-se para sempre da vida dela. Agora, ele procurava, apenas, um pouco de frescor antes de enfrentar o pai, que havia voltado para morrer em casa”. Está longe de ser um primor de literatura, mas conseguiu evitar, em sua simplicidade, um longo e pesado flashback. Aos poucos, utilizando essa invenção em diversas formas e extensões, e em alguns acertados momentos do romance, o ficcionista pode trazer ao presente tudo o que ache absolutamente necessário do passado. Um pormenor: o discurso indireto, como usado acima, é o mais feliz modo de fazer isso. Enfim: cada ficcionista, com seu empenho, saberá como desenrascar-se dessa pseudo-obrigatoriedade arqueológica, e aí é que reside sua técnica e sua arte.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho