Coadjuvantes

Se o leitor não acreditar numa personagem coadjuvante, desacreditará também das personagens centrais; evitar essas armadilhas é uma forma de escrever melhor
Ilustração: Paula Calleja
01/06/2021

1.
Personagens de apoio — ou, como traduzimos o supporting da Academia de Hollywood, personagens coadjuvantes — pertencem a uma esfera nebulosa, de pouca atenção da crítica e da história literária e — agora ao que nos interessa — de escasso zelo do ficcionista. Não gostamos de falar nisso, eis a verdade, ou, se não gostamos, dedicamos aos seres que habitam esses domínios um cuidado acessório, como se representassem um trambolho no contexto do romance. Disso resulta que se tornam inconsistentes, mas de uma inconsistência capaz de comprometer a narrativa.

2.
Colabora para o mal-entendido o fato de, muitas vezes, chamarmos a tais personagens de “secundárias”, como se possível fosse existirem personagens principais.

Existem, isso sim, personagens centrais, que essencializam o conflito, e podem ser duas [May Bartram e John Marcher, de A fera na selva], três [Dimitri, Alyosha e Ivan Karamázov, de Os irmãos Karamázov] ou uma, apenas [Paulo Honório, de São Bernardo]. Personagens centrais possuem um “halo conflitual” — sorry pelo canhestro neologismo do sintagma — que envolve outros agentes do enredo, os quais participam integralmente dele. Nesse “halo” não há lugar para seres estranhos nem causantes de ruídos, tal como a aparição de bichos entre flores.

3.
O romance é uma unidade sistêmica, em que todos seus elementos devem funcionar para expor e, passo seguinte, dar vigor ao conflito até levá-lo a um ponto insuportável. Não ajuda ter ilusões: o romance tem essa função; caso contrário, o interesse do leitor termina na página 11. Pois bem, a unidade sistêmica é composta de elementos múltiplos, de diferentes qualidades e intensidades, que devem ser necessários para que o romance exista, mas também devem ser suficientes. Nada deve faltar, nada sobrar. Esses elementos são, dentre outros, o tempo, o espaço, a situação crítica, o conflito e, claro, personagens, sejam centrais, sejam coadjuvantes.

4.
A característica da personagem coadjuvante é “estar presente”, mas não só; é ser, ao mesmo tempo, indispensável. Se não for indispensável, não devemos ter o trabalho em criá-la, ou, se a criarmos, devemos ter o bom senso de apagá-la. E, ao apagá-la, ver se fazem falta no romance. Se não fazem falta, o melhor é fantasiar que nunca existiram, sem apegos nem saudades. Apegar-se a personagens inúteis é fazer um pacto mefistofélico: elas cobrarão suas presenças ao final do romance, e então seremos obrigados a um último capítulo assombrado por fantasmas que, na sua condição fantasmática, só nos aborrecem e tiram o foco, pois nem medo nos infundem. Este é o caso da personagem Berthe, filha de Emma, de Mme. Bovary; a solução de Flaubert para dar um fim a essa pobre “fantasma” foi canhestra, amadora, até.

5.
Pensando nessa indispensabilidade das personagens coadjuvantes, é saber, portanto, que, sem elas, o romance se torna uma massa informe. Personagens coadjuvantes não são andaimes, são estrutura. Se podemos escolher — dentro de limites — os espaços em que ocorre o romance, se podemos fazer opções quanto ao transcurso do tempo da narrativa, a personagem coadjuvante impõe-se como um ser necessário, que necessariamente se articula com as demais.

6.
Se são personagens centrais aquelas que mais têm a perder na história, as outras, por óbvio, terão menos, mas — eis o pormenor — estarão sempre expostas a algum tipo de ameaça, seja moral, seja física; assim, agirão para evitá-la. Isso implica a consistência dessas personagens, a qual deve ser perceptível para o leitor. Em outras palavras: a personagem coadjuvante não deve ser anódina, e, muito menos, um tipo, como é o Conselheiro Acácio. O leitor de hoje já não aceita personagens estereotipadas, ainda que elas tenham funções menos vistosas na história.

7.
As personagens limítrofes atestam bastante bem as razões acima. Entenda-se como limítrofe, neste caso, a personagem em que ficamos em dúvida acerca de sua centralidade; ora parece central, ora não; mas isso é discutir o sexo dos anjos, pois, o que realmente importa, mais uma vez, é sua consistência. Em A fera na selva, Henry James utiliza uma focalização onisciente, com incursões em igual medida na interioridade dos já referidos John Marcher e May Bartram e, portanto, ambos são centrais; sucede que a narrativa parece inclinar-se para a perspectiva de Marcher, o que se comprova com o inaudito final, inteiramente vivido por ele. Se alguns ainda dizem que ele é a personagem central, decerto estão tocados pela cena em que se desespera ante a tumba de May. Literatura não é uma ciência exata, e, por isso, cabe considerar a hipótese de que todas as personagens merecem igual atenção do ficcionista. Com essa providência, preservaremos a integralidade dos propósitos do romance.

8.
Talvez não seja má ideia dedicar duas palavras aos nomes das personagens. Nós, seres humanos, ficamos inquietos enquanto não sabemos como se chama uma árvore ou um pássaro, como se isso fosse importante para eles existirem, mas em ficção narrativa as coisas são diferentes. Nominar todas as personagens é o caminho da confusão, e isso fica mais nítido em se tratando de personagens que não são centrais à trama. Atribuir nome a uma personagem significa a obrigação de não desatendê-la em nenhum momento, e, muito menos, fazê-la desaparecer, esquecer-se dela. “Mas isso é muito trabalhoso”, pode ser a resposta; é uma afirmativa ponderável, para a qual a resposta é bem simples: então não dê nome a ela. O simpático garçom que aparece uma vez para trazer o vinho não precisa ser chamado de Pedro — o indefectível nome de personagens masculinas; a diretora do banco que aparece no enredo apenas para entregar uma promissória ao cliente não precisa ser Alice — aliás, outro batido nome literário para mulheres ficcionais [embora Alice e Pedro sejam mais usados para personagens centrais]. Um erro nesse aspecto e pronto — estaremos povoando em excesso nosso romance, e vá o leitor gastar a cabeça no meio dessa aglomeração de nomes de coadjuvantes.

9.
É uma imensa pena que o ficcionista que está começando perde-se em pormenores, esquecendo-se de que o importante é o conflito de sua história; se os nomes não são essenciais, a consistência dessas personagens o são, e de maneira exponencial. Será preciso ter igual cuidado tanto com as personagens centrais como com as coadjuvantes. Ao conceber e planejar o romance, todas elas interagem com o conflito e servem para potencializá-lo, cada qual na proporção de sua relevância. Se o leitor não acreditar numa personagem coadjuvante, desacreditará também das personagens centrais. Evitar essas armadilhas é uma forma de escrever melhor.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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