Saracuras

Não nos importávamos nada com a doença da avó, mas torcíamos com devoção pelo câncer, com o ódio fincado no corpo impúbere contra a bruxa dos contos de fadas
Ilustração: Carolina Vigna
01/09/2023

Saracuras têm pernas de jetica. Convivi com esta definição boa parte da infância. A saracura, no caso, era minha irmã. A frase saía de tempos em tempos da boca banguela da mãe em alusão à magreza da filha caçula, às pernas esquálidas feito gravetos. Sempre imaginei jetica como algo fino, delicado, quebradiço. Minha irmã tinha pernas de jetica. Até que um dia se quebraram para sempre. Agora, descubro que jetica é o mesmo que batata-doce — que também me remete à infância, mas como um pedaço de sobrevivência, grosseiro e gorducho, assado no fogão a lenha. Minha vida, ironicamente, é marcada por equívocos.

É comum vê-las às margens do córrego que corta parte desta cidade onde moro, às bordas de C. — a ilha da fantasia que abandonei há mais de dez anos. E para onde só pretendo retornar para morrer numa velhice rodeada de fantasmas. Assim espero. Por ora, contento-me em caminhar por ruas esburacadas, sujas, poeirentas e com algumas saracuras no meio do caminho, feito um elefante a afastar-se da manada. Estou resignado com a insignificância de muitas coisas.

Em geral, são duas aves magricelas de bico longo a buscar alimento no gramado ao redor do riacho que também recebe parte do esgoto. A beleza da vegetação contrasta com o fedor humano. Talvez sejam saracuras-do-banhado, do brejo ou do mato. Mas não tenho certeza. Há uma infinidade de saracuras espalhadas pelo mundo e minha vida de ornitólogo não passa de uma fraude.

Quando a avó paterna chegou lá em casa, o pai logo avisou que ela estava muito doente. Talvez tivesse receio de que nós a maltratássemos, ao fim de uma vida desprezível. Mas não utilizaríamos o mesmo método do inimigo: durante sua agonizante estada, lhe entregamos apenas um silêncio indiferente e chispas de crueldade infantil. Não nos importávamos nada com a doença daquela velha. Mas torcíamos com devoção pelo câncer. Tínhamos o ódio fincado no corpo impúbere contra a bruxa dos contos de fadas, mesmo numa casa habitada por nenhum livro infantil. Vivíamos num mundo cujas histórias de assombrações nos chegavam pelo vocabulário reduzido da mãe.

Para nossa surpresa, a mãe, sempre acuada por uma vida de violências, disse-nos “essa aí está mais magra que uma saracura”. O câncer já fazia o seu laborioso trabalho naquele corpo movido a amarguras e rancor. Sim, a avó também tinha pernas de jetica. Desde então convivi com a ideia de que saracuras nos remetem a coisas boas e más, algumas terríveis. São aves contraditórias ao meu olhar perturbado pela morte. Ambas as saracuras já morreram: uma velha, destroçada pelo câncer; outra na juventude, arrastada pelo inexplicável.

As duas saracuras conviviam à distância. Protegíamos nossa irmã — uma menininha delicada, magricela e um tanto assustadiça — da matriarca de um castelo de palha mal-assombrado. Ficávamos ciscando ao redor do fogão a lenha onde mãe e filho (a avó e nosso pai) tomavam chimarrão pela manhã. Apesar do câncer, a velha invariavelmente empunhava um cigarro de palha — herança de uma vida nos grotões do mundo mais ao sul. A cuia numa mão e o palheiro na outra pintavam um quadro ainda mais assustador: uma espécie de espantalho a afugentar pássaros indesejados: nós. O chiado da bomba de chimarrão misturava-se a um ronronar cavernoso e constante a expelir a doença pela garganta até a boca de dentes podres. Como era assustador olhar aquela mulher que, por imposição do pai, ainda chamávamos de vó. Logo, sentiríamos apenas alívio diante do cadáver.

Na crendice popular, a saracura três-potes (que é a mesma do brejo) anuncia a chuva com sua cantoria grave e alta. A saracura canta, a chuva vem. Nunca ouvi as saracuras aqui cantando. Mas aparecem logo após a chuva à beira do riacho por onde passo diariamente por volta do meio-dia. Estão em busca do alimento que se esconde no gramado. O bico longo e fino serve de pinça à cata de insetos, capins, minhocas, larvas. Parecem saracuras satisfeitas em meio a uma urbanidade caipira.

Quando tenho tempo, permaneço observando as saracuras em busca de algum significado que simplesmente só existe para mim.

Uma manhã, o pai levou a avó ao hospital. Devido ao agravamento da doença, ficaria internada. Sairia somente para morrer na terra onde passou a vida — um lugar que nunca visitei, um túmulo relegado ao esquecimento. Fomos visitá-la uma única vez. Atravessamos a cidade de ônibus. Era um domingo que nos pareceu ainda mais triste. Em silêncio e um tanto contrariados, seguimos a ordem do pai. Afinal, ele era um filho amparando os últimos dias da mãe. Mas nós não tínhamos muito amor por aquela gente: nosso pai e nossa avó. Era como se formássemos duas famílias distintas e rivais de saracuras.

Era apenas uma fiapo de gente numa cama. O que era magro tornou-se esquelético: um corpo apodrecido entre lençóis de um hospital público. A avó estava no fim. A mulher malvada iria morrer em breve. Nas histórias infantis, a bruxa sempre perde no final. Nas nossas histórias familiares, todos perdem no final. Seu espectro — holograma maquiavélico vindo de porões que desejávamos trancados para sempre — nos rondará possivelmente rumo à eternidade. Não sei se meu irmão lembra da avó com frequência. Afinal, não converso há tempos com ele. Não sei como lida com os fantasmas familiares. Em todo caso, sempre dou um jeito de não os deixar morrer em paz. Se nos assombraram em vida, assombro-os na morte. É uma vingança inútil, mas toda batalha perdida merece uma vingança eterna.

Os ornitólogos — como invejo pessoas que gastam a vida observando e estudando aves — acreditam que as saracuras vivem em torno de vinte anos. Mas não há comprovação científica. O cálculo é feito comparando-as com aves de espécies similares às das saracuras. Obviamente, há lógica no improviso.

Avós, em geral, vivem muito. São aquelas figuras afetuosas, cercadas de netos, oferecendo ao mundo uma aura de bondade e placidez. Nas famílias felizes, as fotos das avós se espalham pela casa. São como anjos a abençoar o pródigo lar. Nunca tive fotos de minhas avós em casa. A paterna, possivelmente, não sairia nas fotografias, não teria o reflexo no espelho, não seria possível capturar a imagem de uma assombração. A materna, mesmo amorosa, não deixou muitos rastros devido à precariedade da vida. Tenho apenas uma foto com ela: sou um homem com mais de quarenta anos ao lado de uma senhorinha gorda e carrancuda. Poucos anos após o retrato, ela morreu e está enterrada em um lugar que desconheço, num pedaço de terra também aqui ao sul.

Minha irmã morreu aos vinte e sete anos. Acho que ainda tinha pernas de jetica. Algumas saracuras quase chegam aos trinta anos de vida.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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