Quando registramos a infância por escrito, ela é pior do que foi. Na literatura, na perspectiva de criança, há um truque literário. Há muito de real lá dentro, mas tudo são palavras colocadas uma diante da outra, uma atrás da outra, uma depois da outra — no que foi vivido, porém, era confuso, simultâneo, empilhado, uma coisa sobre a outra.
Herta Müller
Tínhamos poucas palavras em nosso reduzido mundo. Não que fôssemos silenciosos. Os berros — às vezes, espécie de urro de um animal ferido — rondavam o cotidiano desde a chegada a C., onde moraríamos numa aparente bucólica chácara de flores, mas que aos poucos se mostrou um cárcere a que estaríamos condenados por um bom tempo. Trabalhávamos para pagar a morada: uma meia-água de madeira, com luz elétrica, água encanada, mas sem banheiro — uma casinha com um buraco nos fundos do terreiro simulava um nojento vaso sanitário. A mãe, uma mulher rude e triste, tentava domar os três filhos pequenos à base de gritos e chineladas. Por entre os cedros, a voz da mãe nos alertava para o almoço, para o banho, para o trabalho. Era comum intercalar palavrões em italiano — um dialeto qualquer aprendido com os avós na infância miserável numa roça hostil — para nos lembrar que ali não havia delicadezas. Éramos poliglotas de duas ou três palavras que serviam apenas para nos ofender. Nosso sangue europeu não era dos melhores. Mas não havia ofensa possível: aquela vida sempre nos pareceu algo corriqueiro — trabalhar desde criança, o pai bater na mãe, a mãe bater em nós. Era assim ao nosso redor, nas outras famílias. Tudo muito igual e tedioso. O círculo do inferno é sempre redondo e uma prisão difícil de se escapar. Nosso jogo da amarelinha não tinha céu.
Estávamos sempre com os ouvidos a zunir (por ironia, esta palavra nomeia uma das minhas tias: Zunir. Por que deste nome? De quem foi a ideia?). A mãe gritava, nós obedecíamos. Eram palavras simples, muitas vezes ditas de forma errada, em frases curtas e óbvias. Talvez a mãe tivesse vergonha da boca. O silêncio a protegia de algo. Quando a ira transbordava, o urro espantava os passarinhos nos galhos. Tinha a boca banguela. Ainda uma mulher jovem, todos os dentes a abandonaram. Lembro que em alguns dias, deixava-nos sozinhos em casa e rumava para um dentista da prefeitura. Após idas e vindas, voltou com a boca lisinha, meio chupada para dentro. Parecia uma velha num corpo, mesmo muito maltratado, com alguma energia ainda. Aos nossos olhos de criança, nossa mãe se transformara em outra mãe. Até o dia em que a boca ganhou uma reluzente dentadura. Os dentes de mentira nunca esboçaram um sorriso. Nossa mãe era a mulher mais triste do mundo.
No resto do tempo, um incômodo silêncio se imiscuía entre nós, como a nos alertar que o equilíbrio daquele amontoado de cinco pessoas, numa casa reduzida e miserável, era dos mais delicados.
Durante o dia, a mãe urrava. À noite, o pai — exausto pelo trabalho e pelo excesso de cachaça — roncava feito um elefante agonizando na areia. Quando bebia pouco, roncava menos. Mas o pai sempre bebia muito e tornava nossas noites num espetáculo de pavor. Às vezes, antes de dormir, dava uns socos e uns chutes na nossa mãe. Nunca entendíamos por que o pai batia na mãe. Ela não fazia nada de errado. Trabalhava o dia todo, cuidava da gente, os três filhos, rezava bastante em silêncio, não falava quase nada. Mas o pai chegava em casa bêbado, balbuciava algumas palavras desconexas e começava a bater na mãe. Dava uns tapas, uns socos, uns chutes. A gente até tentava protegê-la, mas nesta época éramos ainda bem pequenos. Depois que crescemos, meu irmão também deu uns tapas, uns socos e uns chutes no nosso pai. Aprendemos desde cedo que violência gera violência. Gentileza era uma palavra que não existia lá em casa.
A mãe não usava garfo e faca para comer. Qualquer que fosse a rala refeição, empunhava uma colher e ficava muito tempo ruminando. A mãe tinha um problema no esôfago — uma espécie de estreitamento —, o que a impedia de ingerir alimentos normalmente. Tinha de ser tudo muito pequeno, reduzido ao máximo, em doses liliputianas, e mastigado lentamente, num tempo que, às vezes, nos irritava. Talvez por isso, a mãe tenha sido magra a vida toda, até o dia em que o câncer decidiu acabar com aquele sofrimento e a mastigou inteira, sem qualquer parcimônia ou delicadeza. O câncer também resolve alguns problemas. Mas antes da doença, a mãe sempre comia de colher. Acho que ela sentia um pouco de vergonha disso. No dia do meu casamento, uma festa meio exagerada, com algumas pessoas endinheiradas, importantes (seja lá o que isso signifique), e que só comiam de garfo e faca, lembro do pavor nos olhos da mãe ao meu lado. Parecia pedir socorro diante daquele prato obsceno. Ela cortou tudo em pedaços muito pequenos e, feito uma criança perdida dos pais no parque de diversão, ficou ali sem saber o que fazer. É possível que preferisse que eu lhe entregasse um algodão-doce e a levasse de volta para casa.
A mãe sempre me chamou de esganifado — uma palavra que não consta de nenhum dicionário. Esganifado, em nosso raquítico vocabulário familiar, é alguém que come muito, com avidez, com desespero. Um morto de fome. Enfim, um esganifado. Mas eu não lembro de comer feito um esganifado. Até porque nunca havia muita comida. E a pouca comida não era das melhores. Ainda hoje, em toda refeição, tomo cuidado para que as pessoas ao redor não me considerem um esganifado que come de garfo e faca.
Meu filho L. — um menino lindo, magricela e longilíneo — tem quinze anos e, na volúpia da adolescência, é também um esganifado. Dia desses, na cozinha aqui de casa, devorando algo de que não me lembro, disse-me “gosto mesmo é de comer com colher; é muito melhor, mais fácil”. Olhei-o com espanto. “Mas minha mãe não deixa eu comer de colher”, completou. Eu lhe disse “aqui você pode comer sempre de colher”. Ele sorriu.
M. é meia-irmã de L. Ela, uma menina de franja e corpo de dançarina talentosa, precisava de um dicionário para terminar a lição de casa. “Pai, você tem um dicionário?”, pergunta-me, talvez sabendo a resposta. Pego um dos muitos dicionários que habitam a casa-biblioteca. Juntos, buscamos o significado da palavra agricultor. Ela lê com atenção e copia no caderno com uma letra bojuda, bonita, arredondada. M. me diz que tem o objetivo de ser uma ótima aluna neste ano. Está no bom caminho. Eu lhe conto que sua avó, minha mãe, foi uma agricultora, que plantava para comer, para sobreviver, quando eu nasci na roça. Aproveito e lhe digo que a avó só comia de colher. Ela diz “mas eu também sempre como com a colher a sopa aqui na sua casa”.
A palavra colher nos une, todos uns esganifados.