O menino morto

Em um início de noite, o construtor de violões e carros de madeira encontrou o filho deitado — ali ele soube que sua genialidade de nada valia diante da morte
Ilustração: Carolina Vigna
01/12/2023

Não estava lá diante dos gritos de desespero. Ou houve apenas o silêncio? De tudo isso, sei apenas o contado entre frases malconstruídas, entrecortadas numa teia de sussurros familiares. A morte, sempre ela, é o cartógrafo que desenha as trilhas da nossa história. O fim da tarde era o prenúncio do descanso previsível na noite de sono na casa simples. Imagino que tenha sido assim: exausto, o homem (um dos meus tantos tios) socava as mãos nos bolsos da calça enquanto caminhava lentamente em direção à casa. Na cabeça, preocupações prosaicas: as contas a pagar, a lista do supermercado escondida nos fiordes da memória, um ou outro sonho excêntrico. Ou apenas o vazio a guiar os passos vagarosos. Nunca comentei esta morte com ele. Meu tio é, sem dúvida, um homem deslocado, arredio ao convívio ruidoso da vida, um estranho. Nisso, talvez sejamos muito parecidos.

Não que seja um tabu — não somos pudicos com nossas tragédias domésticas —, mas tampouco é um assunto devassado pela algaravia das línguas faladeiras. O menino, cuja idade não sei (talvez recém-entrado na adolescência), estava quieto, escorado no batente da porta, as pernas meio enviesadas sobre a escada de poucos degraus. Contou-me uma prima com um estranho e nervoso sorriso escapando o tempo todo pelo canto da boca. Ele estava morto!, terminou de maneira apoteótica o seu breve relato, balançando os braços feito um falso fantasma sob o lençol. Não havia necessidade de qualquer malabarismo narrativo para intensificar a tragédia da cena. O menino estava morto no final de tarde; e o pai o encontrou ali, como se estivesse apenas descansando.

A viagem era longa. Íamos de ônibus: a mãe e nós, os três filhos. O pai, em geral, deixava-se ficar na cidade. Preferia o bar e a companhia de outros bêbados a viajar centenas de quilômetros no lombo de assentos duros e desconfortáveis. Nunca tivemos maiores preocupações afetivas entre pai e filhos. Olhando com a distância das décadas, talvez desejássemos a lonjura do pai. Agora, já não desejo nada em relação a um passado de ausências. Atravessávamos a noite para chegar numa manhã preguiçosa à casa da avó materna. Era nos confins de uma roça que havíamos deixado há alguns anos. Nas férias escolares, regressávamos numa alegria que nos espantava. Sempre fomos de poucas palavras e de sons tímidos nos raros momentos de festa.

Mas naquele retorno algo nos impulsionava para um mundo arcaico e de descobertas. Éramos içados ao trabalho na lavoura, nas roças de feijão e milho. Na caça a melancias bojudas entre os pés de trigo. Na colheita de vassoura, cujos ramos ganhavam cabos de madeira e se transformavam em desajeitados, mas eficientes objetos para varrer o terreiro e a casa de tábuas. E, no ápice das tarefas rurais, agarrar o porco pelas orelhas para matá-lo numa espécie de ritual da sobrevivência no terreiro diante do açude. Todos em volta do tacho fumegante, da mesa de pelar com água fervente, da maquineta de fazer linguiça. A avó, uma mulher baixinha, gorda e mandona, cuidava para que nada escapasse à sabedoria ancestral, de italianos calejados pelas dificuldades de uma vida na roça.

Havia entre todos os tios — a família era composta por onze irmãos — um que nos fazia gargalhar. Um tanto estabanado, vivia a correr entre a plantação e a casa, pulava cercas e, invariavelmente, jogava-se no rio sem qualquer pudor em despir-se. Além disso, às vezes, falava como se estivesse uivando para a lua. Ao cair da noite, quando a casa ganhava uma precária iluminação de um lampião a gás, catava um violão e disputava a atenção de todos. O violão, como quase tudo que o rodeava, fora fabricado por ele com pedaços de madeira e fios de náilon para as cordas. Uma espécie de instrumento pré-histórico que, aos nossos ouvidos de criança, era de uma genialidade absurda. Autodidata, tocava e cantava músicas sertanejas. Um ou outro irmão o acompanhavam, formando duetos e trios caipiras. Nós, pequenos seres urbanos, espantávamo-nos com a inusitada virtuosidade.

Mas o que mais nos divertia eram os improvisados carros de madeira. Ele os desenhava com uma caneta bic azul num caderno e, durante um ou dois dias, transformava o celeiro em moderna linha de montagem. Munido de serrote, pregos, dobradiças e uma infinidade de tranqueiras, ele se escondia em seu laboratório automobilístico. Não podíamos incomodá-lo. Logo, surgia uivando feito um lobo na boleia de um automóvel de rodas gigantescas e apropriadas para o horizonte de buracos e pedregulhos. Subíamos em duplas e descíamos bestiais ladeiras com o volante a trepidar em nossos braços infantis. Eram dias de êxtase.

Um dia, o homem que corria em volta da lagoa com os cabelos besuntados de gel ganhou a eleição. Virou presidente. Depois, veio uma mulher de voz de hiena no cio e — além de trocar bilhetes eróticos por baixo da mesa em reuniões ministeriais — resolveu confiscar o dinheiro nos bancos. Meu avô, um homem de mãos gigantescas e olhos azuis, não aguentou o desespero da penúria acentuada: enrolou uma corda ao pescoço e deixou o corpo abandonar-se no vazio entre os galhos da árvore e o chão antes cultivado. Fim de uma história. Começo de outra.

Com o suicídio do pai (meu avô), alguns filhos abandonaram a roça e rumaram para C., a cidade onde estávamos havia algum tempo. O construtor de carros e violões resolveu arriscar dias melhores na cidade grande. Afinal, era uma espécie de gênio. Com o tempo, percebeu que sua genialidade, somada a um quase analfabetismo, de pouco servia entre prédios, carros e uma pressa desesperadora. Então, construiu um carrinho com rodas de bicicleta e saiu pelas ruas a catar papel, papelão, latas, garrafas, plásticos, as sobras de uma gente movida pelo consumo. Virou um catador de lixo reciclável. Depois, talvez cansado de massacrar o asfalto com os pés cansados, juntou-se aos irmãos como pedreiro. Hoje, está de volta aos grotões da roça de onde, possivelmente, nunca deveria ter saído.

Naquele fim de tarde, arrastou os pés portão adentro. Avistou o filho sentando meio torto diante da porta de casa. O que teria passado por sua cabeça naquele momento? O que sentira ao ver o filho estranhamente sentado com as pernas jogadas na escada? Parece que morreu de um mal súbito. Nada sei sobre aquele menino, meu primo, com o qual não tive nenhuma convivência. Nesta família de dimensões oceânicas, somos quase todos estranhos. Eu, afastado do mundo familiar e social, desconheço as ramificações que se espalharam com o suicídio do meu avô. Somos muitos, somos ninguém. Mas recolho pequenos trechos, pedaços de vida, para contar uma história sem registro.

Naquela tarde, início de noite, o construtor de violões e carros encontrou o filho morto. Sua genialidade de nada valia diante da morte. Talvez tenha entoado alguma triste canção e uivado para a lua feito um animal ferido.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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