O ladrão de meias

O cronista e seu filho são os únicos jogadores de uma partida de futebol sem regras, em que as traves são feitas de livros de contos e romances
Ilustração: FP Rodrigues
01/08/2021

Para Lorenzo, cujos pés cresceram

O ruído quase imperceptível desliza pelos degraus de metal da escada em caracol. O frio chegou como sempre. Infiltra-se pela casa, abraça os móveis, envolve as roupas, espalha a preguiça pelas nervuras dos dias. Lá fora, sobre o telhado poeirento, o tímido sol luta para trazer algum conforto. No inverno os roubos se tornam mais frequentes. Já estou acostumado a ver a Lebre de Março — surgida de um doméstico país das maravilhas — a saltitar fantasiada com os meus pés até o sofá, onde refestela-se à espera de um carinho. É um pequeno animal dos mais folgados e felizes.

Surge longilíneo, o corpo a transbordar a estrutura magra, ossuda, sorridente. É o espanto do tempo — aquele mesmo tempo que Santo Agostinho tão bem conhece e desconhece. O tempo que nos impulsiona em direção ao fim, nos aconchega na convivência amorosa, traz alguma esperança, nos joga a favor da vida, nos incita contra a morte (numa previsível batalha perdida desde o início). Foi tudo tão rápido: esta esperta lebre era um menino há alguns segundos. Eu o carregava sonolento com facilidade escada acima. Ronronava à espera do sono profundo. Na cama, remexia-se até o raiar do próximo dia. Era leve, fácil de amparar, o corpo em construção exalava um calor inesquecível. Agora, salta serelepe com pés imensos, comodamente envolvidos em minhas meias, roubadas com a sutileza de um elefante numa loja de cristais. Aos poucos, esvazia gavetas. O guarda-roupa é uma desavisada vítima sempre à espera das mãos larápias. E quando as devolve, algo bastante raro, encontro um pé trocado, outro furado — como se um camundongo faminto se empanturrasse do pano ordinário. Tudo com a desfaçatez de quem sabe que o amor sempre perdoa pequenos crimes.

Devidamente protegido, busca a bola esquecida pela casa. Escorrega pés e meias pelo piso gelado. Movimenta-se com a certeza de quem sabe o que está fazendo — é um engenhoso atleta de chutes certeiros e dribles estranhos. Transforma estantes e livros em traves. Os memoráveis gols encontram romances, poemas e contos que pouco entendem daquele futebol doméstico. As boladas nos clássicos russos já são uma tradição. Dostoiévski tem se mostrado um péssimo goleiro. Há tempos, desisti de domar a fúria das amorosas jogadas no estádio imaginário. Ronda-me a culpa desde sempre.

Diminuto, pouco mais de dois anos de idade, os dedos dos pés com mesmo defeito genético (grudados, cuja estranha designação é sindactilia; ou seja, somos dois seres sindactilianos, ou coisa parecida), ensinei-o o início de um campeonato cujo fim ignoramos. Eis a graça da nossa competição.

(Escolhemos os times: de um lado, eu; do outro, ele. Divisão simples para uma partida complexa. Distribuímos as camisas. Impositivo, bate a palma da mão no piso — os dedos delicados produzem um som afetuoso — e desafia-me. Desgrudo os olhos da tevê e deslizo o corpo pelo sofá em direção ao assoalho. Nosso gramado brilha sob a luz pregada no teto. O silêncio do estádio no começo da noite não causa decepção devido à falta de público. Estamos acostumados a dividir solidões. Sou um homem de quase quarenta anos; ele, meu filho a apenas tatear o início do mundo.

Ao seu lado, a bola amarela espera pacientemente o início da partida. Sem qualquer aviso, ele a arremessa em minha direção. O impulso fraco do corpo frágil mostra-se insuficiente. Estico os braços e enlaço a esfera transparente. Aproveito a viagem das mãos para acariciar-lhe o rosto. Nosso futebol admite delicadezas com o adversário. Somos dois times de apenas um jogador cada. Não há ataque, defesa, grandes jogadas, faltas, lances emocionantes, torcida adversária. Inventamos as regras, dispensamos juiz e bandeirinha. As dúvidas, nós as destruímos com um gesto, um olhar. Em nosso complexo mundo, as coisas se revestem de simplicidade. Tudo se resume ao passeio preguiçoso da bola amarela entre os poucos centímetros que nos separam.

Meu adversário é complacente com a minha falta de habilidade. Evita manter qualquer simetria — dois bonecos de pano a correr pela corda bamba no circo da periferia. Somos, quase sempre, pequenos barcos perdidos na tempestade. Não há gol. Nem comemorações efusivas. Comedidos e discretos no amoroso jogo que inventamos. Finjo concentração extrema ao lhe devolver a bola. Ao agarrá-la meio de lado, grita gol. Dispensamos a lógica. O lance mais prosaico se transforma em ficção particular, um mundo em que as possibilidades ironizam a seriedade da vida.

A pequena palavra aprendida recentemente enche-lhe a boca de poucos dentes, espalha-se pela sala, perambula pelos quartos, rebate na vidraça e alegra a partida sem hora prevista para acabar. Gol. Não há trave, nem rede. O gol imaginário levanta uma torcida de apenas dois torcedores. Somos time e torcida; o nosso próprio espetáculo. Ele é goleiro e atacante. Sempre com as mãos. Subvertemos as regras, inventamos outras. E somos felizes. Ninguém nos vê, ninguém entenderia o estranho futebol que nos une. Nossos times são desiguais em excesso. Faltam-lhe força e ritmo. Sobra-lhe curiosidade. É um jogador determinado, não teme as adversidades. No deserto da sala, dois camelos param para beber água.

Quando a noite atravessa o mundo, salta o horizonte e nos descobre solitários em nosso jogo. A ausência de estrelas nos traz uma sensação de proteção. O que nos espera do outro lado? Na tevê, um gol verdadeiro chama-nos a atenção. Deixamos o improvisado estádio. Ajudo-o a escalar a imensidão entre o gramado e o cume do sofá. Na tela, muitos homens correm atrás de uma bola. É branca. Não é transparente. Há certa organização. Um homem de amarelo movimenta-se entre eles. Apita, gesticula. Um vaga-lume agitado sobre a relva. A bola vai e volta, foge arisca. Ao meu lado, meu filho aponta para a tela e desenha sons engraçados. O dedo indicador tenta acompanhar a partida. De tempos em tempos, grita gol. Deixo-o criar seu placar lúdico. Transforma laterais, escanteios, faltas, tiros de meta, tudo em gol.

Cansado, ele se aninha em meu colo e implora pela mamadeira. Em poucos minutos ressona esticado no sofá. A noite e o silêncio dominam toda a casa. É hora de colocá-lo no berço. Desligo a tevê antes do fim da partida a que assistíamos. Os resultados reais pouco importam. De volta à sala, organizo o nosso estádio. Deixo a bola no centro do gramado.)

 

Agora, alguns anos depois daquela partida, ele mira com certa ironia o ângulo na estante ao fundo. Aprendera com muita destreza. Dostoiévski nada pode fazer. Salta para o canto errado. A bola arrasta Crime e castigo. É gol, ele diz e olha para as meias que escondem os nossos pés.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho