Minha coleção

O conjunto de medos só faz aumentar, sem qualquer esforço, chegam sem pedir licença, afastam a poltrona e sentam na sala de jantar
Ilustração: Guilherme Paixão/ Thapcom
01/04/2022

Sou um homem a colecionar medos. Meu álbum está quase completo. Tudo começou na infância — este depósito de alegrias e desesperos. Quando a mãe nos mandava dormir, eu mergulhava os olhos debaixo da cama. Era um mergulho cego, um escafandrista nu, em busca do inimigo oculto. Ali, sob o estrado, meu medo ancestral: a poeira.

Do escuro à claridade, meu primeiro imenso pavor. Não queria aportar deste lado da vida; rasguei as entranhas da mãe, numa luta desigual. Ela a querer me dar à luz; eu a agarrar-me em suas carnes ainda jovens. Um pequeno elefante a ser parido por uma gazela. Foram três dias até conseguir expulsar-me. Cheguei numa noite de tempestade pelas mãos de uma parteira para além do fim do mundo. Desde então preencho este álbum.

Se aqui estou, apavoro-me. O escuro é meu inimigo. A luz excessiva, minha perdição. Na praia, busco a sombra. Minha pele esbranquiçada afasta-se do mar — este monstro que tenta nos engolir a todos. Tenho certeza, logo conseguirá. A profundeza do mar é, para mim, o mapa da eternidade não desejada; escapo desesperado. A luz intensa do sol a assar corpos é o retrato fiel do ilusório paraíso. Olho para a areia e vejo perfilados pequenos frangos deliciosamente assados e prontos para o banquete final. Fujo da praia, do mar e do sol. Não uso óculos escuros. A semiescuridão falseia a realidade e me atira de volta à tempestade de onde saí.

A água salgada não me seduz. O ar me enlouquece. As alturas massacram meus músculos. Dão um nó nas vísceras. Sou acrofóbico. Não nado e não voo. Não sirvo para peixe ou pássaro. Sou um inútil animal caminhante. Mas muito me amedrontam também os passos nesta terra. Tenho medo (e muito) de morrer andando. Não é medo da morte. Este, também tenho, confesso. Mas medo mesmo eu preservo de morrer caminhando. Um passo depois do outro na rua, na calçada, nas entranhas desta cidade alucinógena. E, sem aviso, caio morto. Apavora-me a ideia da cena patética: eu, um eucalipto desengonçado, a tombar em plena rua. Seria adequado aprender a voar?

Se caminho e as vejo, encolho-me. Aterrorizam-me as mulheres de calça branca. O contorno do corpo envolto na brancura é uma adaga a penetrar meu abdome. Descarto, é claro, as enfermeiras e as anciãs. A estas tudo é permitido, desde que a geografia dos contornos esteja folgada na alvura do tecido. Medo surgido na academia. Ela chegou de coxas torneadas no bronze, bíceps delineados à perfeição e calça branca a realçar a libido. Um ser destinado a desafiar os machos. Mais um temor entrava-me pelos poros e alojava-se no desconhecido.

Não temo os animais. No sótão onde passei parte da infância havia ratos e aranhas. Fizeram-me companhia na penumbra das tardes quentes. Talvez o sótão explique o meu pavor do sol. Não busco explicações para os espinhos que, cotidianamente, alojam-se debaixo das unhas. Lembram-me que ainda estou vivo. De cachorro, não tenho certeza. Minha irmã tinha terror aos cães. Um dia, uma canzoada a derrubou no terreiro da casa da avó. Pegou ódio absoluto. Hoje, eles não a assustam mais. Uivam para o céu e encontram apenas a indiferença da lápide.

Diz a psicologia que os medos servem como proteção. Estar alerta diante deles nos previne do pior. Tento encontrar uma utilidade militarista nesta guerra diária contra o pavor do rastro deixado pela lesma na calçada, do butiá a cair antes do tempo do pé, de esquecer o queijo na geladeira por longo período, de Papai Noel de barba postiça, de viciar em pular na cama elástica, de ler livro fino, da página dois dos jornais (ainda existem?), de visitas que chegam sem avisar, de esquecer a chave na porta de casa, de errar a direção da escada rolante, de encontrar ex-namorada na fila do supermercado, de ver disco voador em dia de chuva. Há outros mais estranhos. Mas estes me bastam por ora.

Esta minha coleção só faz aumentar. Sem qualquer esforço. Chegam sem pedir licença, afastam a poltrona e sentam à mesa de jantar. Alguns avançam por baixo da porta. Outros me encontram na rua. Vários me acarinham os ossos durante o futebol na tevê. Não sei onde isso vai parar. Mas disso não tenho medo. Medo mesmo eu tenho de esquecer.

A quem mostrarei meu álbum completo?

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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