Duelo de silêncios

A descoberta de que alguns diálogos são impossíveis e não dependem apenas da boca
Difícil definir quando acabaram as noites de faroeste. Simplesmente, desapareceram, como quase todo o resto
31/03/2020

Kirk Douglas morreu. Sempre me intrigou aquele furinho no queixo. Impossível não notá-lo. O bolo recém-assado recebe o carinho pontiagudo do aniversariante. Os tiros ressoavam na escuridão. À volta, a quietude entre plantas e flores. Morávamos numa floricultura logo que chegamos a C. Aninhado no canto do sofá de napa, contava os corpos espalhados, despencados de cavalos, ribanceiras, árvores, janelas. Estirados na poeira nos rincões do Velho Oeste. Minhas histórias infantis tingidas de sangue numa terra inóspita. A cada estalido, um morto entrava em nossa sala — uma improvisada extensão da cozinha. O sofá desajeitado e a pálida tevê tentavam entregar alguma dignidade ao falso cômodo. Kirk brigava, matava, beijava as mocinhas. Era um herói num reino longínquo.

Foram muitos filmes em noites determinadas da semana. Um imperturbável silêncio nos unia. O cachorro, às vezes, é ignorado pelo dono à soleira da porta. Rin-tin-tin ladrava distante no encalço de outros bandidos. Não havia um código ou convite. Jantávamos todos à mesa de fórmica cujas bordas soltavam algumas lascas. A mãe caprichava na sopa de macarrão com miúdos de frango: pé, pescoço e moela. Meu irmão era um verdadeiro artífice: deitava na mesa uma pilha de ossos fininhos, desprovidos de qualquer vestígio de carne. O pescoço de galinha, catado às pressas da panela, revoluteava em sua boca. De repente, a carcaça era cuspida. Deixava um pequeno pedaço preso entre os dentes. Pelo orifício, um silvo agudo invadia a casa. Meu irmão assoviava e olhava-nos com certo ar de superioridade.

Quando me dava conta já estava no sofá, perto do pai, logo após a novela. Ninguém mais nos fazia companhia. A mãe recolhia-se cedo ao quarto para despertar com a noite ainda a cobrir nosso mundo. Meu irmão e minha irmã também não ficavam ali. Sempre que recordo dos filmes, eram apenas eu e o pai. E Kirk muitas vezes.

Gostava muito das perseguições às diligências. Lembravam-me carroças pomposas. Na roça — de onde tínhamos chegado havia pouco tempo — os bois vagarosos eram sovados pela fúria do chicote. Bandidos em busca de ouro e dinheiro. Sempre havia uma donzela frágil. Os cavalos estacavam de supetão. A nuvem de poeira, misturada à da pólvora de revólveres e espingardas, cobria a tela chamuscada. Os índios enfurecidos em torno das carroças acuadas também me fascinavam. Os tiroteios nas montanhas despertavam desejos heroicos. No dia seguinte, lá estava eu perdido nas encostas da chácara, um pedaço de madeira transformado em potente arma na cintura. Fui um estropiado xerife na ausência de inimigos reais.

Mas não havia tiro capaz de arrebentar o silêncio. Era uma montanha intransponível entre nós. Às vezes, o pai me olhava. Um olhar nem bovino, nem agressivo — apenas indiferente. Como se a esquálida companhia não fizesse qualquer diferença. Ele, os passos meio tronchos, talvez devido ao incômodo sofá, ia ao banheiro nos intervalos do filme. A casa ganhava algum movimento. Sempre achei que pais não conversassem com filhos quando crianças. Mais tarde, descobri que alguns diálogos são impossíveis e não dependem apenas da boca.

Quando o pai chegou em casa com a tevê em preto e branco e usada, não imaginava que aquela caixa de madeira com uma tela de vidro seria nosso refúgio e o único aconchego possível. Não me faziam falta as cores. Ignorante do daltonismo que atravessava meus olhos, encantavam-me os movimentos dos desenhos animados. Tudo cinza, quase monocromático. As tonalidades pouco variavam. O rato fugia o tempo todo com pilhérias do gato. O desfiladeiro abrigava o coiote a sofrer com as artimanhas endiabradas do papa-léguas. Na floresta, os cipós levavam o selvagem herói até o rio. As vigorosas braçadas do homem macaco lembravam meus tios a nadar nos rios — a água espalhava-se pela sala e encharcava o sofá. A marca telefunken transformava-se em nave espacial a levar-me a outros planetas.

Era tudo muito precário: quando o chuvisco tornava impossível divisar os movimentos, o pai tascava um chumaço de bombril — que alguns anos depois descobri tratar-se de uma marca; substantivos e nomes próprios, muitas vezes, não fazem a menor diferença — na ponta da antena. Estranhamente, a epilepsia das imagens arrefecia a fúria. Era possível seguir sonhando.

Difícil definir quando acabaram as noites de faroeste. Simplesmente, desapareceram, como quase todo o resto. Cada um tomou o seu rumo. Agora, encontramo-nos raramente na mesma rua em que moramos. O tempo fez o seu trabalho. Kirk Douglas morreu aos 103 anos, nem réstia do herói de tiros certeiros e abraços delicados em mulheres de penteados impecáveis. Parece que destinou parte da fortuna à filantropia. O pai também está perto do fim sem nem ao menos sonhar com o centenário. Faltam-lhe muitos anos. O corpo, corroído pelo álcool, dá claros sinais de fadiga. Não deixa nenhuma fortuna. Eu o acompanho em silêncio.

Soube da morte de Kirk Douglas numa manhã de quinta-feira. Li com interesse o breve texto sobre como vivera cercado pela família, rico, famoso, aparentemente feliz. Penso em contar ao pai, que vive alienado do mundo, sobre o fim do nosso herói. Talvez ele me olhe em silêncio sob a soleira da porta.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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