Disse-me na tarde ensolarada “você é egocêntrico”; não me assustei, mas tentei, meio sem jeito, argumentar algo como “não, não sou”, sem pensar, sem pesar o estrondo seco das palavras, despreocupado, afinal, ali, entre a sala e a cozinha, estavam duas pessoas que se amam, um amor construído na volúpia dos primeiros encontros, que aos poucos ganhou a solidez dos dias de correria, das incertezas prosaicas, das alegrias quase infantis; apenas a olhei e esbocei um argumento, não, não havia necessidade de argumentar, ela logo emendou “fui casada com um músico”, então, era isto: um músico egocêntrico — talvez frustrado pela falta de talento ou de oportunidade, não sei, não o conheci, apenas o vislumbro nas palavras que me chegam aos pedaços; mas era isso, um músico egocêntrico projetava sua sombra em mim, parado na cozinha, com o pano de louça nas mãos; encostei-me perto da janela, na rua dos fundos mora um homem que agride a mulher, de madrugada a gritaria, às vezes, nos acorda, é um descontrolado, um sujeito, possivelmente, capaz de matar alguém no alvoroço da noite; fiquei ali diante da janela ruminando a frase “você é egocêntrico” e lembrei que o músico virou corretor de imóveis e está sempre à espera de um cliente que busca realizar o sonho da casa própria — esta expressão tão comezinha da classe média: sonho da casa própria, onde noites de insônia transformam-se em pesadelos e desespero, mas, claro, há a possibilidade da felicidade, esta felicidade que escavo mirando esta mulher — sempre linda e surpreendente — em pé entre o sofá e a tevê, argumentando que conhece bem esta coisa do ego; isso porque acha que, sim, sou egocêntrico; o ex-marido era egocêntrico; olho-a com interesse, tentando entender onde deseja chegar com aquela frase solta em meio a uma tarde preguiçosa: “você é egocêntrico”; nunca tinha pensado nisso até aquele dia, mas agora me acompanha sempre esta ideia: a de ser egocêntrico; mas em que sentido?, da vaidade solidificada num mergulho solitário para dentro como se fosse imperturbável, invencível e que considera todo o entorno desprezível?; talvez ela confunda minha inclinação a certa misantropia, a timidez disfarçada, meio ridícula, minha crônica falta de paciência com muitas gentes, com este conceito difuso a que se agarra não sei bem por quê; talvez tenha sido apenas uma frase solta, sem qualquer intenção de esgarçar os limites da intimidade, de arrebentar minha frágil tranquilidade, mas ali, sem pretender qualquer embate, até porque temos assuntos mais importantes para discutir, para construir um caminho que nos afaste cada vez mais do que não desejamos: ela, daquele sujeito que a infernizou; eu, para a calmaria que parece nunca chegar; afinal, há pessoas que surgiram, brotaram de um útero, com a única missão de transformar o inferno em algo inóspito até mesmo ao demônio; e penso na mulher que dorme com aquele homem do outro lado da rua, numa casa velha, mal cuidada, toda desbeiçada; são gritos de fúria e horror que invadem as madrugadas, às vezes, durante muito tempo até que, aos poucos, se acalmam, quando o dia nasce e traz a falsa impressão de que o sossego preenche aquela casa; eu fico ali pensando naquele homem e, de repente, lembro — e isso sempre acontece: feito um raio de fogo, invadem-me as imagens da mãe sendo chutada e socada pelo pai, quando ele chegava bêbado em casa, um homem mentiroso e covarde transformava-se num monstro de língua flácida, uma lesma a escorrer pelos lábios, na boca de dentes podres, e nos socava — a esposa e nós, seus filhos —, nos sufocava na desgraça daquela tapera, uma casa de madeira caindo aos pedaços, que recendia a cachaça, pecado e violência; então, aquele homem que berra aqui perto agora é uma lembrança, um espectro maligno que avança pela rua e me alcança neste apartamento — charmoso e confortável — onde, agora, nesta tarde clara e agradável, ela me olha e diz “você é egocêntrico”, mas acho que isso não tem importância, até porque, talvez, ela esteja apenas lembrando do ex-marido (o que me parece normal) e faça alguma ligação entre nós, mesmo eu sendo um sujeito careta e um tanto misantropo; ela talvez considere minha vida algo aborrecido, até meio besta, feita de livros, filmes e filhos; e talvez ela quisesse, mesmo sem confessar, que eu tivesse uma existência mais animada, mais próxima das aventuras juvenis de alguns de seus amigos: pessoas a viver trancafiados numa eterna adolescência, apenas disfarçada pela sanha de ter bens materiais da vida adulta; mas só consigo sentir indiferença pela frugalidade que os rodeia — e talvez aí resida a impressão de que eu seja um egocêntrico; não sei; e para piorar a comparação, nada entendo de música: sou um surdo a ouvir uma banda de mudos; mas eu estava mesmo pensando no homem que grita de madrugada — uma música bestial — e espanca a mulher; era neles que pensava quando minha mãe surgiu de repente morta sobre as cobertas — esta é uma história conhecida: encontrei a mãe morta numa manhã gelada de junho; lá se vão doze anos: a carne fria, o corpo rijo e seco tal um graveto, o câncer a gargalhar sobre o silêncio; no velório o pai estava ao lado do caixão e teve a cara de pau — uma desprezível desfaçatez — de rezar, de invocar um Deus particular, que a ele, o pai, consegue perdoar, de ajudar em tudo, de receber as pessoas; eu fiquei ali por perto observando seus movimentos, suas palavras, seus gestos de bom marido; depois de morta, a mãe ainda teve de aguentar o cinismo daquele homem que tanto tentou matá-la; há certa ironia nisto: o marido violento a velar o caixão da mulher; e era sobre tudo isso que eu pensava (ou talvez não pensasse, porque isso nunca me abandonou: nada disso vai embora; nunca — então, não preciso lembrar, apenas carrego comigo, e quando decidi fazer terapia, a terapeuta, uma mulher bonita que usava vestidos que me deixavam entrever suas coxas, disse-me “você carrega muitas histórias” e eu pensei que isso era um tanto ridículo, pois todo mundo carrega muitas histórias; a questão é que a maioria não sabe muito bem como contá-las, pois ao fim tudo é linguagem, como transformar os fantasmas em algo real, num fantasma que nos acaricia o corpo e nos arrasta da escuridão para a luz e, na maioria das vezes, da luz para a escuridão; e nem precisa ter lido nada de psicanálise para entender que praticamente tudo está lá trancafiado no calabouço da infância; então, desisti da terapia, até porque jamais esqueci o jeito como a terapeuta cruzava as pernas nas tardes de quarta-feira); e ontem — um ontem atemporal — recebi uma enigmática mensagem pelo celular: “sua mente, às vezes (ou não tinha este às vezes?), é perversa”; e isso também me inquieta porque não a compreendo, não entendo a frase e ela fica aqui na minha cabeça dando voltas, neste sótão cheio de fantasmas; e, então, num estalo percebo que somos quatro homens: o ex-músico frustrado, o homem violento que urra na madrugada, o pai que desfere socos e pontapés num defunto; e eu: um daltônico perverso e egocêntrico; a terapeuta de pernas bonitas apenas nos observa com um sarcástico sorriso.