A catedral

Alguns temem as tuas incertezas; outros renegam os labirintos que tuas curvas constroem
Ilustração: Guilherme Paixão
01/06/2022

Na ternura do tato, o gosto da saliva. Há uma troca silenciosa. Toco-lhe suavemente. Estamos sozinhos. A solidão não nos assusta. Não agora. Ela é necessária. Eu percorro o teu corpo com a delicadeza do voo desesperado de uma borboleta na tempestade. É possível sentir-lhe a textura a arrepiar-se na ponta de meus dedos. Irmanados, entregamo-nos às nossas fraquezas e desesperos. Que não são poucos. Devagar, descubro quem é você, que segredos e abismos esconde na epiderme delicada. É preciso abrir-lhe as vértebras. Dali, o sumo do teu corpo escorrerá. Sem sangue ou dor, o mistério entreolha pelas frestas. Misturam-se dúvidas, sustos, silêncios, espantos e felicidade. As sensações aumentam. Eu aferro-me a você em busca de mim. Ser insano é permitido na catedral que nos protege, que abençoa o nosso pecado. Do lado de lá, o riso de escárnio tenta nos ridicularizar. O ridículo nunca nos incomodou. Estamos imunes. Sabemos que não há salvação. Ninguém se salvará do jorro incessante que desce a encosta. É somente questão de tempo. Enquanto isso, nos desnudamos diante de todos. Sem a vergonha de blasfemar no altar da nossa ignorância. A santidade é apenas uma passageira ilusão. Pecar é a sina que nos protege. As mãos espalmadas buscam o teu corpo. Aproximo a boca da tua pele. Os lábios apenas insinuam o toque. Aspiro todo o teu cheiro. A tensão entre nós aumenta. Ninguém nos observa. Somos dois náufragos abandonados na ilha imaginária. Nunca ninguém nos salvará. Desejamos a perdição.

Quando descobri o amor, pergunta-me a menina com sorriso de corruíra, sentada na primeira fila na sala de aula. Não lhe digo. A resposta está em mim, mas não a encontro. Se tento arrancá-la do calabouço da memória, algo se sobrepõe. O medo da mentira freia minha língua que, mansa, recolhe-se ao interior da boca. Mastigo em silêncio a lembrança da entrega. O amor solitário a me acompanhar. Na infância, com certeza. Ou seria na adolescência? Quando a fenda do abismo se abriu sob meus pés? Quando o golpe me jogou na lona? “O que nos faz ser o que somos?” Esta pergunta me envolve quando sobre teu corpo deito minhas mãos. É nele que busco respostas. Sei que nunca as encontrarei. O lúdico da busca é a própria busca. O ponto de interrogação avoluma-se a cada encontro. Não sei quem você é. E você brinca comigo num jogo de esconde-esconde. A infância é um peixe a arrastar o anzol vida afora. Defloro a tua intimidade com lúbrica curiosidade. Lolita me abre as pernas em sinal de lascívia excessiva. Luxúria é revestir nossa intimidade de dúvidas. Alguns temem as tuas incertezas. Outros renegam os labirintos que tuas curvas constroem. Você abriga e abençoa nosso pecado. Por que tão poucos saciam a fome no teu leito?

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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