A avó

Ela não está enterrada em lugar nenhum, mas isso não me parece um problema: bruxas não precisam de túmulos, estão por aí, sobrevoando as noites de tempestade
Ilustração: Carolina Vigna
01/06/2025

Não acredito no inferno, mas tenho certeza de que minha avó paterna está por lá, sentada ao lado direito do demônio. Ela veio morrer em C., na precária casa que habitávamos no início da vida na cidade grande. A roça já não era mais uma possibilidade. Fomos expulsos pela penúria que nos rondava e pela ânsia do pai de conhecer o mundo. Num plano todo estropiado, tínhamos deixado para trás a rala plantação de feijão e milho, o açude sem peixes e algumas histórias de fantasmas. Agora, morávamos numa cidade com prédios, carros, gentes e um futuro carregado de outros tipos de assombrações. A avó nos visitava de tempos em tempos. Era o lobo mau a encarar os carneirinhos no pasto. Odiávamos aquela mulher. Éramos apenas crianças, mas a mãe nos transmitira o desprezo por meio das palavras. Contava-nos com frequência que a cada parto — todos em casa, pelas mãos de uma exímia parteira — a avó desferia a maldição: “Nasceu mais um diabinho naquela casa”. Fomos três diabinhos magros e assustados. Nunca entendi por que ela nos amaldiçoava. Talvez apenas transferisse o ódio pela nora (nossa mãe) para os netos. O ódio é algo fácil de espalhar.

Ela chegou com uma esquálida trouxa com pouquíssima roupa — apenas uns trapos amassados. Logo cedo, pela fresta da porta do quarto, eu a via diante do fogão a lenha: o palheiro numa mão e a cuia na outra. Sorvia o chimarrão com gana e algum ritmo. A água quente infiltrava-se pela boca de dentes apodrecidos. Seu filho, nosso pai, fazia-lhe uma silenciosa companhia. Aqueles dois tinham poucas palavras e não as dividiam com facilidade. Dois sovinas afogando-se com apenas a metade do alfabeto. Ficavam ali à beira do fogo passando a cuia um ao outro. Não lembro se o pai compartilhava o cigarro de palha. A nossa casa, nestes tempos, exalava um incontornável cheiro de abandono.

Era uma mulher feia. Naquela visita, sua pele ostentava uma cor estranha. A doença já lhe corroía as vísceras. O pescoço comprido lembrava um solitário avestruz. O pomo-de-adão ressaltado subia e descia num balé manco. A voz sibilina arranhava as paredes da casa, revoluteava pela pequena cozinha e nos encontrava no quarto, escondidos debaixo das cobertas. A risada esporádica trovejava perdigotos. Às vezes, após um ronco assustador, escarrava pela janela — a bola de ranho e cuspo voando em direção ao terreiro. O corpo esquelético arqueava com facilidade, ameaçava tombar para, em seguida, sentar-se na cadeira de palha ou na caixa de guardar lenha. Exalava um odor pútrido pela casa. Analfabeta, a avó era a bruxa das nossas histórias infantis.

A avó tem câncer. A curta frase do pai — um homem quieto que, embriagado, se transformava em besta — não nos causou nenhuma tristeza. Na falsa ingenuidade da infância, torcíamos pelo câncer. Ele quase sempre vence.

Quando casaram, o pai e a mãe foram morar na tapera de chão batido da avó. Os três na vastidão do mato feito animais perdidos da manada. Ali viviam de maneira precária, com um tacho a cozinhar a rala comida no meio da casa. O avô andava bêbado pelo mundo. Um dia, encontram-no morto caído numa valeta. A mãe contava-nos que o início do casamento foram os piores dias de sua miserável vida. Ainda não desconfiava de que o câncer também a mastigaria por inteiro. A sogra a olhava com o ódio a fervilhar nas ventas. E a ofendia com o grotesco e pobre vocabulário. Nunca entendi tamanho ódio, dizia a mãe um tanto resignada.

Das muitas histórias, uma sempre retornava à boca da mãe: naquela casa nasceu mais um diabinho. A repetição destruía qualquer possibilidade de afeto por aquela mulher que chamávamos de avó apenas por costume e imposição do pai. Numa das visitas, ensaiei um abraço, uma tentativa de algo que desconhecia. Joguei os braços em torno do corpo cadavérico, enlacei-a pela cintura, afundei o rosto em seus peitos — umas tetas moles, só pele engruvinhada no corpo seco — e senti a aspereza dos ossos das costelas. O cheiro azedo repeliu-me para longe, uma espécie de nojo percorreu todo o meu corpo. Mantive distância da avó, temia que ela me jogasse num caldeirão e, enfim, me transformasse num diabinho de guampas afiadas e pés de bode.

A contrário da nossa mãe, a avó nunca rezava. Deus — não sei muito bem qual — sempre rondou nossa casa graças à boca banguela da mãe. Orava com devoção agarrada a um rosário. Tentava nos proteger de todos os males. Nós também rezávamos o terço com a mãe. Ela exigia a presença dos filhos. Eu desconfiava de que não estava adiantando muito: a pobreza nos estrangulava a barriga, o pai bebia quase todos os dias e se transformava numa espécie de genitor dos diabinhos. Estranho isso: a avó nos amaldiçoou desde o nascimento, mas era seu filho quem mais se parecia com o demônio. Talvez a maldição tivesse alguma lógica: os filhos do demônio só podem ser diabinhos. Um dia, os diabinhos crescem e se transformam em demônios. E assim o círculo do inferno estará completo. Eu, para contrariar, venço há décadas a luta contra o alcoolismo. É fácil ser um demônio diante de uma garrafa.

O pai levava a avó ao tratamento no hospital. Até o dia em que ela não voltou mais para casa. A internação era o último refúgio antes do cemitério. O câncer, como eu imaginava, vencera a batalha. Em conluio, o câncer e o demônio devem travar grandes e interessantes batalhas por aí. Pouco antes do fim, o pai nos levou para visitá-la. Depois da modorrenta viagem em três ônibus diferentes até um bairro de C., chegamos ao hospital. Era um hospital para os pobres — um lugar feio e lúgubre. A avó era um cisco entre os lençóis na enfermaria. O câncer fizera um ótimo trabalho: com método e astúcia, transformou-a em algo desprezível, uma réstia da mulher malvada que habitara nossos pesadelos. Não senti tristeza ao vê-la a um passo da morte. Não senti absolutamente nada. Apenas a olhei ali estirada. Ficamos todos em silêncio ao seu redor por poucos minutos. Em seguida, fomos embora. No outro dia, ela morreu.

Hoje, o pai é um homem velho e meio desnorteado. O excesso de álcool fez estragos no corpo e na cabeça. Já não é aquele sujeito violento que nos assustava com a fúria etílica, que ameaçava atear fogo à casa ou nos matar a facadas e pontapés. É apenas um velho à espera do fim. Há alguns anos, quando ainda tinha alguma energia, o pai viajou aos grotões da roça para reencontrar parentes e conhecidos. Na volta, perguntei-lhe sobre o túmulo da avó. Ele disse que não conseguiu encontrá-lo, pois não há nenhuma indicação no cemitério. Possivelmente, a ossada tenha sido retirada para dar lugar a outro defunto.

A avó não está enterrada em lugar nenhum. Mas isso não me parece um problema: bruxas não precisam de túmulos; estão por aí, sobrevoando as noites de tempestade, sempre em busca de diabinhos para amaldiçoar.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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