Tostão de chuva, de Mário de Andrade

O poema de Mário de Andrade que apresenta várias composições narrativas
Mário de Andrade, autor do poema Tostão de chuva
18/02/2016

Quem é Antônio Jerônimo? É o sitiante

         Que mora no Fundão

Numa biboca pobre. É pobre. Dantes

Inda a coisa ia indo e ele possuía

         Um cavalo cardão.

Mas a seca batera no roçado…

Vai, Antônio Jerônimo um belo dia

Só por debique de desabusado

Falou assim: “Pois que nosso padim

Pade Ciço que é milagreiro, contam,

Me mande um tostão de chuva pra mim!”

Pois então nosso “padim” padre Cícero

Coçou a barba, matutando, e disse:

“Pros outros mando muita chuva não,

Só dois vinténs. Mas pra Antônio Jerônimo

         Vou mandar um tostão”.

No outro dia veio uma chuva boa

Que foi uma festa pros nossos homens

E o milho agradeceu bem. Porém

No Fundão veio uma trovoada enorme

Que num átimo virou tudo em lagoa

E matou o cavalo de Antônio Jerônimo.

         Matou o cavalo.

Este poema de Mário de Andrade se encontra na seção O ritmo sincopado de Clã do jabuti, de 1927, seu terceiro livro de versos. Como apontou Luiz Costa Lima, em Lira e antilira, há aí muitas “composições narrativas”, entre as quais este quase conto. Se os protagonistas são o pobre sitiante e o santo milagreiro, os demais — o cavalo cardão e os “nossos homens” — completam a trama, que tem no narrador uma peça-chave. O espaço e o tempo da estória se desenrolam num Brasil rural de início de século, como não deixam dúvidas a data de publicação do livro, mas sobretudo as alusões ao cearense Padre Cícero (1844-1934) e às moedas tostão e vintém, vigentes até 1942.

Antônio Jerônimo, dono de um cavalo cardão (de cor azulada), diante da seca no sítio e da fama de milagreiro do Padre Cícero, “por debique de desabusado” apela ao santo para que mande chuva; a chuva chega, ajuda a plantação de milho, mas termina por matar o cavalo de Jerônimo. O enredo é transparente, porém pleno de ambivalências e ironias. A começar pelo tom narrativo, que se disfarça em versos hegemonicamente decassilábicos, entrecortados por três hexassílabos com rima em “ão” e um verso final, diferente, isolado, em redondilha menor, de arremate tragicômico.

No entanto, a repetição desse verso diferente — “Matou o cavalo” —, que faz parte do verso anterior — “E matou o cavalo de Antônio Jerônimo” —, é a culminância de uma série de repetições formais que o poema empreende: [a] a espacialização distinta dos quatro versos “menores” (2, 5, 16 e 23); [b] o retorno do título “Tostão de chuva”, inteiro no verso 11 e parcialmente nos versos 14, 16 e 17; [c] a reiteração do nome “Antônio Jerônimo” em quatro vezes; de seu “cavalo”, três; e do verbo mandar, em variações: “mande, mando, mandar”; [d] as expressões que ecoam proximamente com frequência, como em “pobre. É pobre”, “Inda (…) indo”, “padim / Pade”, “‘padim’ padre”, “Pois / (…) Pois”; [e] as rimas (externas) que percorrem todo o poema: “sitiante / Dantes”; “Fundão / cardão / tostão”; “possuía / dia”; “roçado / desabusado” etc.; [f] as rimas internas (toantes e consoantes), como “mora / biboca / pobre”, “seca / batera”, “assim / padim”, “matutando / mando”, “bem. Porém”; [g] as aliterações e assonâncias que contribuem para a musicalidade em andamento: “CAvalo CARdão”, “DEBIque DE DESABUSADO”, “ME MANdem”, “MANdo MUIta”, “VEIo uma chuVA”, “FOI uma FESta”, “VEIo uma troVOada”. Não há, contudo, um padrão regular, uma simetria, uma régua que imponha um andamento uniforme ao poema. Daí, não à toa, estar o poema na seção O ritmo sincopado, em que o poeta — ademais, professor de música, com vários livros sobre o assunto — procura trabalhar com quebras e surpresas. Talvez a maior delas seja, no conjunto, exatamente a tensão entre o tom narrativo e essa série de recursos e elementos sonoros e poéticos.

O sabido interesse de Mário pelas relações entre literatura e música vem desde o Prefácio interessantíssimo, que abre Pauliceia desvairada (1922), com reflexões sobre harmonia e melodia, passa pela rapsódia Macunaíma (1928), cuja estrutura musical baseada na embolada nordestina foi estudada com pioneirismo por Gilda de Mello e Souza em O tupi e o alaúde, e chega à ópera Café (1942), publicada postumamente, para recordar apenas três exemplos da maciça presença da música na obra do autor de O baile das quatro artes.

No caso de nosso sitiante, a ironia se multiplica, pois ele, de fato, não crê, como prova o verso que introduz sua interesseira encomenda de um tostão de chuva ao além

Há, entre os desencontros encenados no poema, dois que chamam atenção: de imediato, o sentido de “tostão” para o sitiante e para o milagreiro e, num plano mais amplo, a relação do protagonista com a fé. No primeiro caso, testemunhamos que Jerônimo pede um tostão de chuva, no sentido popular (também, desde então, corrente) de “um pouco de chuva”, um “pingo de chuva”, mas Padre Cícero entende — ou quer entender — o pedido por equivalência monetária, daí, em vez dos habituais “dois vinténs”, manda mais, isto é, um tostão, que se traduz em valor de “chuva boa”, de uma “trovoada enorme” que “virou tudo em lagoa”, tendo como consequência a morte do cavalo cardão do pedinte. Algo como se o tiro saísse pela culatra, o feitiço virasse contra o feiticeiro. Nessa perspectiva, a relação do pobre sitiante do Fundão com a fé e atitudes afins se assemelha à das pessoas em geral; em particular, aqui, à do brasileiro que se faz de religioso em busca de proveito próprio.

As nove Teses contra o ocultismo, em Minima moralia, de Theodor Adorno, assim se iniciam: “A propensão para o ocultismo é um sintoma da regressão da consciência”. Por ocultismo, o filósofo compreende todas as formas de obscurantismo que se exercem, ou disfarçam, como práticas mistificatórias e distantes da razão, como astrologia, adivinhação e qualquer tipo de religião ou credo. Afirma o filósofo na tese cinco: “A superstição é conhecimento, porque vê reunidas as cifras da destruição que se encontram dispersas pela superfície social; é louca porque, com todo o seu instinto de morte, se aferra ainda a ilusões: a forma transfigurada, transferida para o céu, da sociedade promete uma resposta que só se pode fornecer em oposição à sociedade real”. Noutras palavras, a existência da superstição é já um sintoma da precariedade do esclarecimento da sociedade, que, ao transferir para alguma transcendência a solução de problemas terrenos, atrai e antecipa a catástrofe prevista no próprio pedido de solução. É o que ocorre, guardadas as proporções e as metáforas, com Antônio Jerônimo. Em frase lapidar, Adorno profere na tese seis: “O ocultismo é a metafísica dos mentecaptos”.

No caso de nosso sitiante, a ironia se multiplica, pois ele, de fato, não crê, como prova o verso que introduz sua interesseira encomenda de um tostão de chuva ao além: “Só por debique de desabusado”. Ou seja, só por zombaria — e egoísmo (“chuva pra mim”) — ele se dirige a uma instância transcendental. Entra em cena, com seu próprio debique, a voz do narrador, que lança mão do mesmo vocábulo (“Pois”) para definir duas posturas conflitantes: Jerônimo diz “Pois que nosso padim/ Pade Ciço que é milagreiro, contam” usando a conjunção “pois” no sentido explicativo de “visto que, porque”, como que pondo em xeque a santidade do santo (“contam”); o “narrador do poema” repete o “pois” mas agora em sentido conclusivo de “logo, nesse caso”: “Pois então nosso ‘padim’ padre Cícero”. O que parece o mesmo — pedido e atendimento de uma graça — se desmascara no uso ironicamente diverso do mesmo termo. Mas não só. Se o sitiante duvida da fé (“contam”), entretanto ainda assim vai tentar se locupletar dela; o suposto santo não deixa por menos e, feito o morador de Fundão, se faz de sonso e, “matutando”, manda mais chuva do que o necessário.

O contador desse causo faz questão de repetir que a trovoada “matou o cavalo” de Antônio Jerônimo, exemplar ad hoc de certa conduta religiosa, que grassa em campos e cidades Brasil e mundo afora. A repetição do último verso, “Matou o cavalo”, em vez de produzir um efeito triste, acende um humor incômodo, uma graça constrangedora: destruição, morte, ilusões (termos de Adorno) acontecem quando a “propensão para o ocultismo”, associada a interesses pouco éticos, se sobrepõem à ação do pensamento e da razão, que tenta entender — por mais difícil que seja — o porquê das coisas, das chuvas e dos cavalos.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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