Segunda, de Golondrina Ferreira

Os poemas de Golondrina Ferreira falam de dentro da opressão e do sufoco de quem conhece as entranhas da fábrica
01/06/2025

As máquinas, mortas.
Nós, vivos.
Logo se inverte a coisa.

A fábrica tem fome,
passou um dia inteiro
de barriga vazia.

Então abre suas bocas de catraca
e nos seus dentes vamos passando
um a um.

Dá o sinal:
nos mastiga

e joga o bagaço fora
no fim da jornada.

Os versos acima abrem o livro Poemas para não perder (2019), da gaúcha Golondrina Ferreira. As dezenas de poemas se distribuem em grupos separados pelos dias da semana — de segunda a segunda. Todos são atravessados por uma perspectiva classista, da luta do trabalhador, de denúncia de explorações, do desejo de transformação. Embora autônomos, os poemas podem ser lidos a partir da voz de uma mulher metalúrgica, batalhadora, solidária e corajosa. Em muito pouco se parecem a certa lírica brasileira contemporânea de maior visibilidade (em mídias, eventos, prêmios, estudos), que privilegia engenhosos jogos de linguagem, metáforas hermetizantes, falas identitaristas, intertextos e citações, formas experimentais e híbridas e que explicita, decerto, uma postura de empatia às classes oprimidas — uma empatia, contudo, vincada pela distância. Os poemas de Golondrina falam de dentro da opressão e do sufoco de quem conhece as entranhas da fábrica, e uma breve lida de alguns títulos já mapeiam esse lugar de onde vem a voz da poeta: Diálogo de início de turno, Contrato, Produtividade, Primeiro de maio, Panfletagem (I e II), Protesto e tantos outros.

Em Segunda, como se fosse o capítulo inicial de um romance, os elementos da narrativa se mostram com clareza: o espaço é a fábrica, com “suas bocas de catraca”; o tempo é hoje, presente, atual; os trabalhadores são as personagens protagonistas, e as máquinas as antagonistas; o enredo diz da coisificação por que passam as pessoas, transformadas em “bagaço”; o narrador assume uma voz coletiva, “nós”, e nela se configura o pertencimento — “vamos passando/ um a um”. Tal como se abre o livro, abre-se a semana de labuta. Outrora, o trabalho se constituía em ação transformadora da natureza em prol de atender a alguma carência, mas “[…] o que passa, agora, a dirigir o trabalhador no processo produtivo não são mais as necessidades humanas do trabalhador, mas as necessidades para acumulação da propriedade privada da classe proprietária”, afirmam Sérgio Lessa e Ivo Tonet em Introdução à filosofia de Marx (2008).

A máquina faminta do poema de Golondrina é real, histórica, concreta: para funcionar, basta engolir e regurgitar aqueles mesmos de que se alimenta. Não se assemelha à metafísica máquina do mundo drummondiana, que aparece a um solitário sujeito caminhante, livre, que recebe e recusa o fáustico convite de saber e poder. Em Segunda, o homem vira coisa, descarte, bagaço, e a máquina é pensada em termos antropomórficos, com fome, barriga, bocas e dentes. Máquina que tritura. O livro (após passar por todos os dias da semana) termina, feito um círculo vicioso, novamente com poemas de Segunda, insinuando que, à maneira de um Sísifo feliz (Camus), é preciso resistir, insistir, até que se pulverize a pedra-máquina que obstrui a felicidade. Em entrevista, Golondrina declara: “Há muito que os trabalhadores nadam com a maré contra, mas somos os únicos responsáveis por virar o jogo. Não estou dizendo que seja fácil, mas que é possível, e imprescindível”. A profissão de fé da poeta incorpora esse desejo, tangenciando o horizonte do utópico revolucionário, obstinadamente, e é essa a maior força do livro: “O estético, na obra de Golondrina, só é alcançado para e por meio do político”, diz Alexandre Pimenta. Desde a capa de Maicon Antonio, a partir da obra Solidariedade da gravurista alemã Kathe Köllwitz, com pessoas de mãos dadas (e pássaros em voo), o leitor vai percebendo que a solidariedade pode, se não resolver os conflitos da brutal desigualdade, aliviar o imenso sofrimento que eles produzem.

A consciência crítica da trabalhadora encontra eco na sensibilidade artística da poeta, como se vê em PRODUTIVIDADE:

Mais um
Mais um
Mais um
Não dá…
Mais um
Mais um
Não dá…
Mais um
Não dá tempo…
Mais um
Mais um
Mais um
Mais um
Não dá tempo de pensar!

O poema se constitui de uma só estrofe de 14 versos, sem intervalos, realizando aquilo de que o poema trata. A repetição incessante da expressão “Mais um” (em 10 dos 14 versos) mimetiza o gesto mecânico de tantos tipos de trabalho, como se celebrizou em cenas do clássico Tempos modernos de Chaplin (1936). O corpo na atividade laboral se ocupa tanto e tanto se cansa que o sujeito não consegue nem refletir sobre a engrenagem da qual é peça, menos ainda sobre a própria existência, o que inclui as condições aviltantes do trabalho e a exploração explícita que sofre. A frase quase traumática que se forma traduz um esforço de liberdade e desalienação, o que se reforça com a sutil troca das reticências pelo sinal de exclamação: “Não dá… Não dá… Não dá tempo… Não dá tempo de pensar!”. A elaboração do poema faz lembrar conhecido filosofema de Adorno em Teoria estética (1970): “Os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras de arte como os problemas imanentes da sua forma”. Além de a autora do livro ser mulher, o que lhe dá um ethos que, decerto, não haveria se homem fosse, atravessa os poemas uma voz lírica feminina e feminista que busca o amparo de camaradas de trabalho, a despeito de gêneros.

Pensando nesse debate que envolve gênero e classe, vale recordar reflexão de Heleieth Saffioti, em A mulher na sociedade de classes: mito e realidade (1969), ainda bem pertinente: “Na sociedade de classes, o trabalho, a par de ser alienado enquanto atividade, gera um valor do qual não se apropria inteiramente o indivíduo que o executa, quer seja homem, quer seja mulher. Esta, entretanto, se apropria de menor parcela dos produtos de seu trabalho do que o faz o homem”. Embora tais diferenças de gênero não sejam a tônica do livro, Golondrina não deixa de marcar, sim, que dá primazia nos poemas ao coletivo do nós, mas, às vezes, a singularidade de uma voz de mulher vem à tona, como no belo Atestado:

Atesto para os devidos fins
que a paciente não se encontra
em condições para o trabalho

avisem os chefes
suspendam as metas
reportem aos gerentes de RH

ela se encontra
afoita
eufórica
tremendamente apaixonada

devendo permanecer afastada de suas atividades
até que o modo de produzir a vida
não seja o de matar
o amor.

O poema parodia o gênero textual “atestado”, pois nele se declara que sua “paciente” deve “permanecer afastada de suas atividades” não porque está com alguma doença, mas porque se encontra “tremendamente apaixonada”. O trabalho se dá a ver como algo monótono e prosaico e se traveste de thanatos, pois é o que “mata o amor”, que, diversamente, produz ousadia, paixão, vida. Embora se referindo a relações interpessoais, as reflexões de bell hooks sobre o amor podem ser mobilizadas para esse conflito entre trabalho e amor: “O amor jamais poderá se enraizar em uma relação fundamentada em dominação e coerção. A crítica radical feminista às noções patriarcais de amor não era equivocada” (O feminismo é para todo mundo, 2015). Não à toa no poema os profissionais que devem ser avisados são os chefes, os gerentes (ainda que o plural no masculino signifique, gramaticalmente, a junção dos gêneros — o que, para muitos, sinaliza um exemplo, na língua, da coerção a que as mulheres são submetidas).

Golondrina Ferreira não teme, como tantos poetas e críticos, o vínculo da arte que faz à ideia de engajamento político. Ao contrário, ela mesma diz que pratica uma “poesia de luta”. Seus poemas podem ser lidos à luz da literatura de testemunho: a presença hegemônica da primeira pessoa do plural, falando em nome de um coletivo; relatos de experiência de opressão; vontade de justiça; atos de resistência; preocupação ética, mais do que estética, na elaboração da obra. A poeta se orgulha de ser porta-voz da classe operária e, sendo mulher, o gesto é duplo, como sintetizam Diana Assunção e Flavia Valle, em Feminismo como nicho de mercado e a cooptação capitalista (2016): “é preciso construir um forte partido revolucionário dos trabalhadores pra levar adiante uma revolução operária e socialista, condição necessária para colocar fim a toda forma de opressão e dar as bases materiais e econômicas para que tenhamos nosso direito ao pão, mas também às rosas”. O próprio livro Poemas para não perder faz parte de ações de um grupo coletivo (Trunca), que lançou também a valiosíssima Antologia de poesia de luta da América Latina, com poetas de 24 países. Como diz Golondrina, na Apresentação, cuja epígrafe recorda o músico Victor Jara (assassinado pela ditadura chilena), seu livro chega para se juntar nessa “trincheira da poesia”, pois “andando/ não há de faltar/ um camarada/ em quem se possa apoiar/ para firmar o passo” (Pés rotos).

Em Grande sertão: veredas (1956), diz o narrador Riobaldo: “Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe”. Se não existisse a pessoa real da poeta, o nome “Golondrina Ferreira” pareceria inventado, pois sintetiza uma militância diante da vida e da arte: se “ferreira” pode remeter ao mundo aprisionante e opressor do trabalho, “golondrina” traz a leveza dos pássaros, das andorinhas, da liberdade. Os últimos versos de Poemas para não perder falam desse desejo que se reitera em todo o livro: “Um poema que conecte gerações/ que saiba ainda de onde viemos/ e lance seus versos até os que virão”. A poesia de Golondrina — “poesia que mais-vale” (Jeff Vasques) — não ambiciona, como tantas em nosso entorno, nenhuma revolução ou vanguarda estética. Quer apenas lançar os versos “aos peões que como eu sentem tudo isso ou muito mais, e não transformam em poesia, ou fazem e se perde por aí”. Com dureza mas com ternura, essa andorinha realiza o ofício que Mário Faustino afirma em Poesia-experiência (1958): “A poesia é um pássaro versátil e bem pouco esnobe, capaz de fazer o seu ninho em qualquer canto”. E o canto de Golondrina, poeta rara, ecoa, vai, voa ao mundo inteiro.

 

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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