Poeminha inzoneiro, de Millôr Fernandes

Verso a verso, o poema elabora um tipo — sintetizado na expressão “inzoneiro”
Pela primeira vez um autor contemporâneo é homenageado pela Flip
31/12/2019

Por brasileiro eu me viro
Tomando o algum da gentalha
E dos que não dão, eu tiro,
Pisando em quem me atrapalha.
Sabujo os que estão por cima
Exploro quem me acredita
Corrompo quem não me estima
E enrolo até jesuíta.
Tungando seja quem seja
Mas mais os que nada têm
Depois confesso na Igreja:
“Pô, sou um homem de bem!”

Entre as sete atividades que a enciclopédia livre Wikipédia lista para o carioca Millôr Fernandes (1923-2012) — desenhista, humorista, dramaturgo, escritor [de prosa], poeta, tradutor e jornalista — talvez o ofício de poeta tenha sido o menos frequente e esteja sendo o menos estudado no ambiente universitário. Publicou apenas três livros de versos (Papáverum Millôr, 1967; Hai-kais, 1968; Poemas, 1984), com reedições ilustradas, o que significa bem pouco em termos quantitativos se comparado, por exemplo, às dezenas de traduções de peças e à produção de décadas de trabalho em jornais e revistas.

Polêmico, admirado, demonizado, radical, em sua longa trajetória manteve a liberdade inerente ao exercício do humor, sem poupar “seja quem seja”. Suas tiradas saborosas e seus surpreendentes insights se multiplicam. Em Cem vezes Millôr, apêndice do volume 15 do Cadernos de literatura brasileira (2003), Sérgio Augusto selecionou cem frases do humorista (entre, segundo o antologista, cerca de quinze mil). Seguem duas de suas pilhérias: “A Academia Brasileira de Letras se compõe de 39 membros e um morto rotativo”; e “Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem!”.

Em sua vasta obra, a cultura, os costumes e a conduta dos brasileiros aparecem sem cessar, dando a ver, pelo teor crítico, que o Millôr poeta conhecia muito bem os cidadãos sobre os quais falava, a ponto de assumir a primeira pessoa do singular: “Por brasileiro eu me viro”. Os demais 11 versos desfilam comportamentos eticamente deploráveis. Se, nos anos 1980, o “filósofo do Meier” entendia que o éthos do brasileiro incluía roubar, trapacear, bajular, explorar, corromper, mentir, parece que em 2019 este que se autodenominava “homem de bem” trocou de pele, mas permanece na ativa.

Theodor Adorno, no fragmento 9. Acima de tudo uma coisa, meu filho, de Minima moralia, diz da mentira: “Mente-se só para dar a entender ao outro que a alguém nada nele importa, que dele não se necessita, que lhe é indiferente o que ele pensa acerca de alguém”; e de forma lapidar, com o amigo Horkheimer em Dialética do esclarecimento: “A suspensão do conceito abriu caminho à mentira”. Este perfil de brasileiro pertence a tal estirpe: mente ao outro porque o outro não importa, mas, antes ainda, mente porque inexiste o conceito, o pensamento, a vontade, a condição, o objetivo ético e filosófico de alcançar a verdade. A confissão na igreja é o ápice de uma prática de mentira, fruto podre da semiformação.

Todos os 12 versos são heptassílabos e todos com rimas consoantes e alternadas, o que dá ao poema um ritmo de narrativa, impressão reforçada pela estrofe única (como se cada quadra fosse um parágrafo disfarçado). O uso raro do vocábulo “inzoneiro” não deixa dúvida que o “poeminha” parodia a célebre e ufanista canção de Ary Barroso, Aquarela do Brasil (1939), cujos versos iniciais dizem: “Brasil, meu Brasil brasileiro/ Meu mulato inzoneiro/ Vou cantar-te nos meus versos”, para depois aludir a “mãe preta”, “morena sestrosa” e “Brasil trigueiro”. Neste samba-exaltação não falta a referência à fé popular, “Terra de Nosso Senhor”, fé que, conspurcada, reaparece em Poeminha inzoneiro, seja no verso (a) “E enrolo até jesuíta”, insinuando, com o advérbio até, que este brasileiro possui mesmo talento e técnica para iludir o outro, pois engambela “até jesuíta”, fazendo-nos subentender que jesuítas são peritos em enganar ingênuos; (b) seja nos versos “Depois confesso na Igreja:/ ‘Pô, sou um homem de bem!’”, insinuando, após a “confissão” dos versos anteriores, que a igreja funciona de forma cúmplice a seu comportamento absolutamente condenável, sancionando, por meio do teatro da confissão, a perpetuidade de tal comportamento. Sim, porque “inzoneiro” quer dizer exatamente mentiroso, espertalhão, trapaceiro. Se em Ary o uso do adjetivo ainda pode reivindicar, dado o contexto carinhoso de que se cerca, um tom (embora ambíguo) positivamente afetuoso, em Millôr o uso de “inzoneiro” como farsante e hipócrita é literal, explícito, ratificado a cada verso.

Nos quase duzentos poemas do livro Poemas, algumas dezenas — como este Poeminha inzoneiro — trazem no título o termo “poeminha” (e outros tantos “poemeu”), neologismo que simula um diminutivo, dispensando o clássico e vernacular “poemeto”, e esvazia qualquer pretensão grandiloquente que, muitas vezes, poetas e estetas reservam à poesia; ademais, “poeminha” parece apontar para o tamanho mesmo dos poemas do livro, quase sempre bem curtos, como em alguns impagáveis exemplos: Poeminha sem objetivo: “Brasil, cheio de rios,/ Terra da Petrobrás/ Alguns cachos de bananas/ Y outras cositas más,/ Onde há quinhentos anos/ Se progride o progresso/ E Incitatus, cada dia,/ Está mais perto do Congresso.”: sendo Incitatus o nome do cavalo de Calígula, maluco imperador de Roma (que teria listado o equino como possível senador), e sendo o poema contemporâneo do (até então) último presidente militar do Brasil, João Figueiredo, que preferia o cheiro do cavalo ao do povo, a sátira é evidente. Em Poeminha com estalo de Vieira, a verve se volta contra certo estereótipo de rebeldia (ou resistência, ou militância) do desbunde e do desprendimento de sabor juvenil: “Entendi:/ Sofisticação/ Contestação/ Liberação/ É só sentar no chão”. Possivelmente, a descoberta quase epifânica (o lendário “estalo” de nosso sermonista-mor) se alimenta de alguma fanopeica visão de grupo ou grupos em atos de protesto ou celebração envolvendo o gesto pacífico e algo à Gandhi de não-violência. São inúmeros os poeminhas e poemeus dessa ordem. Para voltarmos ao tema da mentira, que o poeta parece entender como constitutiva da personalidade do brasileiro, fechemos o exemplário com Poemeu efemérico: “Viva o Brasil/ Onde o ano inteiro/ É primeiro de abril”.

Verso a verso, o poema elabora um tipo — sintetizado na expressão “inzoneiro” — que sobrevive às custas de um conjunto de atitudes ilícitas e abomináveis, porém corriqueiras: “Por brasileiro eu me viro” (diz do lugar dessa voz)/ “Tomando o algum da gentalha” (do povo feito ralé)/ “E dos que não dão, eu tiro,” (diz do roubo escancarado)/ “Pisando em quem me atrapalha.” (de opressão e violência)/ “Sabujo os que estão por cima” (diz do ser do puxa-saco)/ “Exploro quem me acredita” (da perfídia traiçoeira)/ “Corrompo quem não me estima” (diz de autoengano e carência)/ “E enrolo até jesuíta.” (do modelo a superar)/ “Tungando seja quem seja” (diz do banal e do mal)/ “Mas mais os que nada têm” (do pobre feito inimigo)/ “Depois confesso na Igreja:” (diz de um lugar conivente)/ “‘Pô, sou um homem de bem!’” (de parecer quem não é).

Curiosamente, e coerentemente, a expressão “cidadão de bem” foi apropriada pelo espectro político de direita e extrema-direita que avança pelo Brasil de hoje. Brandindo o bordão “direitos humanos para humanos direitos”, tais cidadãos são (e generalizo, por necessidade) violentos, armamentistas, preconceituosos, oportunistas, conservadores, meritocratas, religiosos e mesmo fundamentalistas, e portam, no mais das vezes com orgulho, uma visão estreita, bem estreita e estereotipada da cultura e do mundo (repetindo os filósofos alemães: “A suspensão do conceito abriu caminho à mentira”). Nas atitudes e valores dos tais cidadãos de bem de hoje, dá para identificar as atitudes e valores do brasileiro inzoneiro do grande poema de Millôr, que, frasista sem papas na língua, pontificou em Livro vermelho dos pensamentos de Millôr (1973): “Entre a burrice e a canalhice não passa o fio de uma navalha”. Mas dia virá, e que seja breve, que o fio, sim, passará (então “homem de bem” — como pede a expressão — terá sentido mais digno, honesto, autêntico, esclarecido, justo, ético, e longe, bem longe de qualquer burrice ou canalhice que vêm assombrando nosso país).

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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