Colóquio, de Antonio Carlos Secchin

Os doze dísticos de “Colóquio” falam do assunto mais frequente ao longo da história da poesia: a própria poesia
Antonio Carlos Secchin, autor de “Todos os ventos”
29/01/2020

Em certo lugar do país
se reúne a Academia do Poeta Infeliz.

Severos juízes da lira alheia,
sabem falar vazio de boca cheia.

Este não vale. A obra não fica.
Faz soneto, e metrifica.

E esse aqui, o que pretende?
Faz poesia, e o leitor entende!

Aquele jamais atingirá o paraíso.
Seu verso contém a blasfêmia e o riso.

Mais de três linhas é grave heresia,
pois há de ser breve a tal poesia.

E o poema, casto e complexo,
não deve exibir cenas de nexo.

Em coro a turma toda rosna
contra a mistura de poesia e prosa.

Cachaça e chalaça, onde se viu?
Poesia é matéria de fino esmeril.

Poesia é coisa pura.
Com prosa ela emperra e não dura.

É como pimenta em doce de castanha.
Agride a vista e queima a entranha.

E em meio a gritos de gênio e de bis
cai no sono e do trono o Poeta Infeliz.

Os doze dísticos de Colóquio falam do assunto mais frequente ao longo da história da poesia: a própria poesia. Sim, há o amor, a morte, a natureza, as revoluções, o cotidiano etc., mas nenhum deles supera em termos estatísticos a metapoesia. Todos esses temas e outros tantos têm, sem dúvida, múltiplas ramificações e interseções, e a expressão de cada um deles atende, com mediações, aos também multifacetados movimentos da história a que pertencem. Noutras palavras, cada época terá suas formas de metapoemas.

No caso do metapoema de Secchin, estamos diante de uma obra contemporânea, tendo vindo a lume em Todos os ventos, de 2002 — e isto espanta. Espanta porque o poema, com refinado humor, nos faz ver que ainda contemporaneamente reina o senso comum entre leitores de poesia que, em tese, deveriam ter sobre ela uma refinada reflexão. Se os “acadêmicos” (ou “críticos” ou “poetas”) perpetuam tais opiniões, que dirá um leitor que não é, digamos, do ramo?

O chamado eu lírico aqui se pulveriza, dando-se a ver de modos distintos: (a) de imediato, há uma espécie de narrador, que apresenta e ironiza os “juízes da lira alheia” nas estrofes 1, 2, 8 e 12; (b) nas demais estrofes, em itálico, os próprios juízes ganham voz, emitindo seus valores e vaticínios; (c) poderíamos admitir que em cada um dos oito dísticos em itálico há um juiz diferente, haja vista que em cada um deles há uma acusação diferente; (d) por fim, a voz maior do poema é, claro, aquela que fala em todo o poema, e que não é obviamente o autor, mas uma máscara que este elabora para cada poema.

Essa orquestra de vozes, unidas na caretice e distintas nos aspectos que “criticam”, ganha seu contraponto mais irônico na estrutura regular dos dísticos que se repetem, assim como na regularidade monotonizante das rimas emparelhadas e consoantes (à exceção de “rosna” e “prosa”) e ainda no esquema rítmico também regular (exceto o dístico inicial). Os doze dísticos, as dezenas de rimas soantes e o metro assemelhado dão a Colóquio um tom de ladainha, lenga-lenga, ramerrão. A ideia de “colóquio”, como “reunião, ger. de especialistas, em que se discutem e confrontam informações e opiniões pessoais sobre determinado tema” (Houaiss), também entra no pacote das chalaças, pois “colóquio” é nome que rivaliza com “congresso”, “simpósio” e afins, quando se trata de, por exemplo, reunir especialistas para discutir o tema da poesia.

No Colóquio de Secchin, o conjunto das vozes acadêmicas expressa formulações antiquadas, ultrapassadas, ortodoxas, preconceituosas, conservadoras, moralistas, tacanhas. Não surpreende que o Poeta que representa tal conjunto seja Infeliz. O dístico 3 traz de supetão um ataque estúpido e rasteiro ao soneto e à forma fixa, que “metrifica”, sendo uma “obra [que] não fica”, ou seja, sujeita ao ostracismo e esquecimento: salve, Camões, Bilac e Glauco, e toda uma tradição que vem reinventando o soneto, fixando-o, sim, como a mais clássica e flexível das formas líricas!

O dístico 4 se dedica a afrontar poemas que são compreensivos, claros, inteligíveis, que se comunicam com seu leitor, em vez do gesto que distancia, hermético, elitista, superior. Poetas amados como Pessoa, Bandeira e Leminski devem parte da sedução que provocam ao engenho de fazerem poemas que seduzem pela cumplicidade amiga que pactuam: “o leitor [os] entende”, e gosta de entendê-los, sentindo-se parte daquilo que o afeta.

A invectiva do dístico 5 é risível, ao articular o sucesso (o “paraíso”) à poesia séria, deixando explícito que o humor, na Academia do Poeta Infeliz (pudera…), não tem vez. Entre tantos poetas, lembremos Gregório de Matos, Oswald de Andrade e Leila Míccolis, craques do riso que abalam o império do siso. No dístico seguinte, 6, a heresia se dirige agora a poemas longos, de “mais de três linhas”, como se “brevidade” em poesia fosse sinônimo de tamanho ou garantia de qualidade. Para ficarmos sempre com apenas três contraexemplos, registremos os muitos e belos poemas longos e a um tempo sintéticos de Walt Whitman, de Mário de Andrade, de Haroldo de Campos. Não satisfeito, este acadêmico, pudibundo, mal disfarça seu moralismo avesso ao erótico, ao corpo, à vida pulsando em palavras, quando no dístico 7 defende o “poema casto”, isto é, avesso a prazeres sexuais, a tal ponto que nem tem a ousadia de pronunciar “cenas de sexo”, trocando a expressão pela similarmente sonora “cenas de nexo”. Quanto perderia a história da poesia sem os versos picantes de Bocage, Hilda Hilst e Waldo Motta?

O fragmento 51. Atrás do espelho, de Minima moralia, traz considerações de Theodor Adorno sobre a escrita em geral, e a escrita de poemas não escapa a tais considerações: “Quem quiser evitar os clichês não pode restringir-se a palavras, se não quiser sucumbir à leviandade vulgar (…) É raro uma palavra isolada ser banal (…). Os clichês mais repugnantes são combinações de palavras (…) e isso vale até para a construção de formas inteiras”. As falas dos acadêmicos sobre poesia soam patéticas desde as palavras e os sintagmas até o conjunto dos valores estéticos, que são de uma indigência constrangedora. Fica evidente a posição do narrador (alter ego do poeta, professor, crítico e acadêmico Antonio Carlos Secchin) quando logo no começo se refere, zombeteiramente, a estes “juízes da lira alheia”: “sabem falar vazio de boca cheia”. Mais à frente, dirá que essa “turma toda rosna”, explicitando o bestialógico de tais infelizes assertivas.

As falas finais daqueles acadêmicos (estrofes 9, 10 e 11) confirmam o verniz purista-formal que defendem para a poesia, entendendo-a como “fino esmeril”, “coisa pura” e recusando misturas insólitas e que possam ser chocantes. Alguns desses aspectos foram apontados na dissertação de Rodrigo Silveira (UFRJ, 2010) sobre a “poética desconfiada” de Secchin. Valho-me do adjetivo “desconfiada” do mestre para reiterar o óbvio: um reconhecido estudioso de João Cabral, poeta de poetas, feito Secchin, jamais endossaria tantas patacoadas. Aliás, seguindo a lição de Procura da poesia, em que Drummond faz um receituário de coisas a não fazer em poesia/poemas (que ele mesmo fez em sua obra), em Colóquio algo semelhante ocorre, pois na sua obra Secchin faz sonetos antológicos (Linguagens), poemas hilários Poema para 2002), eróticos (Mulher nascida de meu sopro), experimentais (Quase soneto aposentado), políticos (Disk-morte), surpreendentes (Noite na taverna) etc., bem na contramão do que tais tristes acadêmicos acreditam.

Evidentemente, o poema Colóquio cria um estereótipo do poeta (ou do crítico…) antiquado, desinformado, conservador. Se, em ambientes arejados de pesquisa e produção poética, esses clichês não colam, não nos enganemos contudo: o senso comum — na política, na poética, na cultura, na arte, na vida — está aí em torno, com a maioria silenciosamente gritando “gênio” e “bis” para políticos e artistas que, amparados em mídias globais e na gigantesca máquina da indústria cultural, representam a “leviandade vulgar” de que Adorno falou acima.

No belíssimo Na antessala, que abre seu recente livro Desdizer (2017), depois de homenagear três de suas referências (Pessoa, Drummond, Cecília), o poeta arremata em octossílabos (verso preferido de Cabral): “O desavisado leitor/ não espere muito de mim./ O máximo, que mal consigo,/ é chegar a Antonio Secchin”. Poetas, chegar ao que se é: eis a máscara maior — a grande meta.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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