“Anotação 14: o que está inscrito”, de Sebastião Uchoa Leite

Sebastião Uchoa Leite é dos poetas brasileiros mais importantes das últimas décadas
Sebastião Uchoa Leite, poeta, ensaísta e tradutor brasileiro
24/11/2018

A palavra IDIOT
Dentro do nome DosTOIévskI
Raskól (de Raskólnikov)
É “heresia”
Das Schloss de KAFK
É O Castelo mas
Também “fechadura”
Camus escreveu
Le mythe de Sisyphe
(Ou “décisif”?)
Watt (de Beckett) é “What?”
“Em baixo, a vida, metade
de nada, morre”
Ou é a meta de nada?

Sebastião Uchoa Leite é dos poetas brasileiros mais importantes das últimas décadas. Oriundo da riquíssima tradição pernambucana (dos primos Bandeira e Cabral, para ficar em apenas dois consagradíssimos), possui obra vasta e variada. O poema em foco saiu em A ficção vida, de 1993, e exemplifica, com precisão, um dos aspectos centrais de sua poesia e, ademais, de certa poesia brasileira contemporânea: o gosto da/pela citação, que é uma forma visível de exercer a intertextualidade, recurso que explicita, no conjunto, mesmo parcialmente, o elenco de pares de cada poeta.

Se toda citação é uma metáfora, como quer Antoine Compagnon, em O trabalho da citação, vai caber ao leitor o esforço de decodificar o porquê de cada citação (logo, cada metáfora), seja de um trecho, seja literalmente de um nome. Para Harold Bloom, osublime, na poesia, é sempre o ponto da citação: da citação sublimada” (A angústia da influência), conquanto sua teoria da influência não seja uma teoria da alusão tampouco da causação. Importa, sempre, é como a citação se dá, com que tom, grau e valor a citação se faz ver, quer ser vista. Já Marjorie Perloff alerta, em O gênio não original, para o fato de que, “no mundo da poesia, a demanda pela expressão original ainda resiste: esperamos de nossos poetas que produzam palavras, expressões, imagens e locuções irônicas que nunca ouvimos antes”. É a tal demanda que os poetas respondem (ou deveriam responder) quando procuram articular a vontade da “expressão original” à presença incontornável da tradição, presença que se faz visível por meio da citação, em suas múltiplas formas.

Envolvendo obras de canonizados autores — Dostoiévski, Kafka, Camus, Beckett — “O que está inscrito” adota a paródia como recurso básico: não a paródia específica de uma obra ou estilo, mas a paródia dos próprios recursos parodísticos que se sustentam numa relação de codificador e decodificador. Noutras palavras, o poema procura “inscrever” em seu corpo algo que estaria “inscrito” nas obras a que alude. Indo diretamente ao poema, tentemos decifrar um pouco desse algo das múltiplas alusões de que se constitui o poema.

Em Crime e castigo, o personagem Raskólnikov enfrenta um dilema dostoiévskiano: matar ou não uma velha usurária, senhoria a quem devia um tanto de aluguel. Mata-a. E o denso romance se passa em torno dessa decisão de Raskól, de sua “heresia” (palavra cuja etimologia significa justamente: “escolha”). Ademais, o poema detecta o anagrama parcial, que resgata de dentro do nome do autor russo o título em português de uma de suas mais representativas obras, O idiota.

O conhecido mundo kafkiano — de intermináveis processos, de impenetráveis e labirínticas construções, de absurdas e naturais máquinas, de reterritorializações metamórficas — ganha uma potente síntese na imagem desconcertante de uma palavra significar a um tempo castelo e fechadura, como que traduzindo um conflito constitutivo da obra de Kafka, se lembramos que K. não consegue entrar jamais no “castelo”, não tendo a chave da “fechadura”.

A feliz homofonia propiciada pela língua francesa (de Sisyphe/ décisif) dá conta da contundência do livro de Camus que, apesar de se abrir afirmando que “a única questão verdadeiramente filosófica é o suicídioˮ, transforma o peso da pedra rolante de Sísifo num decisivo instrumento de reflexão e revolta que — é preciso imaginar — poderá conduzi-lo à felicidade. Camus reinterpreta, pois, o famoso mito, dando-lhe novo, político e utópico sentido.

Watt, de Beckett, trata do silêncio, de niilismo, da impossibilidade de comunicação, de um moto-contínuo, um strip-tease da linguagem. Aporias que a poesia de Uchoa Leite a todo instante está a apontar. (Voltaremos a Beckett à frente.)

Os versos aspeados (“Em baixo, a vida, metade/ de nada, morre”) vieram do poema Ulisses, de Mensagem, de Pessoa. Uchoa, eliminando uma sílaba repetida através da haplologia (metade de nada), altera o sentido da citação produzindo um fecho inesperado. O poeta parece concluir que metade de nada e meta de nada são como que expressões afins, em tom que mistura humor e melancolia.

O poema Anotação 14: o que está inscrito confirma diagnóstico de Flora Süssekind, em Literatura e vida literária (1985), quando reitera o caráter reflexivo da produção do pernambucano, “com um pé na filosofia, outro na literaturaˮ, acrescentando que “na poesia de Sebastião concretiza-se a própria ideia de ‘nada’, na0 qual se deita e ‘nada’ o sujeito líricoˮ. O diálogo crítico com a tradição faz parte do projeto poético de Uchoa Leite, como o próprio reconhece em depoimento no livro Artes e ofícios da poesia (1991), organizado por Augusto Massi: “Toda produção verbal começa sempre pela imitatio de outros processos já linguisticamente incorporados à tradição. Mesmo gênios tão precoces como Rimbaud ou Keats não partiram do nada. Por trás deles, uma tradição em continuidade desaguava em sua contemporaneidade e deles exigia uma resposta individual”. A resposta de Uchoa passa por poemas como este em análise.

Entre os autores em circuito no poema (Dostoiévski, Kafka, Camus, Beckett), o irlandês é citado em apenas um verso. Dele, Beckett, dirá Adorno em A arte é alegre?: “suas peças cortam todo humor que aceite o status quo. Elas manifestam um estado de consciência que não mais admite a alternativa entre sério e alegre e nem tampouco a mista tragicomédia”. De modo semelhante, a poesia de Sebastião Uchoa Leite, profundamente autoirônica (veja o autoepitáfio em: “aqui jaz/ para o seu deleite/ sebastião/ uchoa/ leite”), quer ser uma poesia pensante, poesia que faz (convida a) pensar, fora de facilidades maniqueístas, e talvez por isso não seja tão popular, fora do círculo de poetas e universitários. Poesia que incomoda, que fica, que se inscreve como capítulo obrigatório para todos que pensam que poesia se “sevilhiza” com Cabral ou que se “libertiniza” com Bandeira. Metáforas e trocadilhos à parte, há mais, muito mais a se redescobrir na densa, divertida e desafiadora obra de Sebastião Uchoa Leite.

O autor de Obra em dobras jamais imaginaria que os pessoanos versos “a vida, metade/ de nada, morre”, de Mensagem, de 1934, retomados décadas depois em seu poema de 1993, em livro exatamente intitulado A ficção vida, fossem tão atuais nesse fatídico outubro de 2018, no Brasil, tão combalido, com balidos, ameaçado por uma onda perigosamente fascista, ignara, boçal, que estimula e inscreve, contra a vida, o obscurantismo, a violência, a barbárie, a morte.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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